[N.112 | 2024]

Cão de pedra [fragmento] 

Dolores Orange

01.

em nove meses, preciso escrever um texto sobre a minha relação com minha mãe, um tratamento contra um câncer e a perda do meu útero.

02.

no final de setembro de 2022, descobri um câncer de colo de útero. era quinta-feira, e minha médica, a que finalmente havia me examinado bem (e a quinta que eu procurava atrás de entender o que eu sentia), me perguntou por mensagem se poderia me ligar. imediatamente entendi que a notícia não seria boa, mas ainda assim meu pensamento não se colou numa doença violenta. atendi o telefone e não estava nervosa. não sei se me sentia só curiosa por enfim descobrir o que me acontecia ou se, contraditoriamente, numa espécie quase brutal de resiliência, eu previa que começaria a viver algo duro. será que eu sabia que aquele telefonema mudaria o curso de tanta coisa e eu precisaria estar de pé para ouvi-lo? caminhava pelo corredor enquanto falava com a médica, e, sem rodeios, ela anunciou: o exame deu positivo para câncer, você precisa agir com urgência. eu estava sozinha em casa. desliguei o telefone, sentei no chão e fiquei em silêncio por um tempo. nenhuma lágrima. só quase uma hora depois um sentimento de tristeza misturado com raiva me faria soluçar no telefone com minha mãe.

03.

dez dias depois, o diagnóstico seria mais preciso. eu tinha um tumor de quase cinco centímetros, um tanto redondo, localizado na porta do útero.

04.

levei um ano pesquisando meu mal-estar até encontrá-lo. maligno, sim, talvez, no entanto não tão agressivo. eu sobreviveria, me falou o médico radiologista enquanto eu segurava a mão do meu companheiro e continha as lágrimas, sentada em um sofá preto dentro de um amplo consultório. eu só precisava começar o quanto antes o tratamento.

as reações, quais serão?, eu perguntei. e, antes de começar a enumerar as principais consequências, ele empurrou com os pés sua cadeira para perto de mim, o que por um momento me fez pensar que ele pegaria na minha mão para então, com a voz tranquila e baixa, me antecipar situações do meu mais novo futuro. mas ele não me tocou, apenas se aproximou o quanto pôde e me olhou nos olhos.

ele era jovem, estava na casa dos quarenta e poucos, se vestia como todos os médicos parecem se vestir, com uma discrição que os faz se mesclar à névoa bege e branca presente em todos os consultórios. aquele médico pálido e sem brilho, preocupado em me olhar nos olhos, me disse que eu sobreviveria, que haveria consequências, claro, e que era possível mitigá-las ao longo da minha vida. só uma delas era um caminho sem retorno: eu perderia o útero.

05.

nunca tive vontade de ser mãe. lembro de conversar na adolescência sobre maternidade com minhas amigas e de me sentir um tanto alienígena. não, não quero ser mãe, dizia rapidamente quando o assunto despontava. elas frequentemente tentavam me convencer do contrário. imagina uma criança com a sua cara, insistiam. imagina a fofura que vai ser, continuavam. e logo emendavam uma lista de nomes possíveis, escolhiam a idade perfeita para parir. falavam do futuro como se pudessem mediar todos os acontecimentos. eu sinto saudade dessa força ingênua com a qual sonhamos entre quinze e dezessete anos de idade.

mas eu não sonhava em ser mãe.

minhas amigas foram entendendo isso, e passaram a entender ainda mais depois que uma de nós teve um sonho comigo. no sonho, cantavam parabéns para mim, a mesa estava rodeada por crianças. eram todas suas filhas, minha amiga me disse. você tinha adotado todas ou várias delas, ouvi ela contando a todas nós no pátio da escola. eu, mãe adotiva de várias crianças?, perguntei para ter certeza. ela confirmou: sim, a mãe adotiva. lembro de achar estranho e, ao mesmo tempo, achar bonito. essa amiga era a mulher mais materna do grupo, aquela que dava broncas e acolhia os nossos segredos mais escuros. foi ela quem tentou, ali numa rodinha de adolescentes sentadas no chão da escola, encontrar uma forma de me fazer mãe.

entre nós, nunca esquecemos esse sonho. vez ou outra, duas décadas depois, ele ainda retorna às nossas conversas. penso se, ao me escreverem desejando força e sorte e amor e fé e resiliência e coragem e tantas outras coisas comuns e também extraordinárias, elas pensam no sonho, informam a mim e a si próprias que eu nunca desejei a maternidade e que, se porventura eu decidir voltar atrás na minha decisão de adolescente, posso fazer daquele sonho a minha vida. sou a única, em um grupo de seis mulheres, que não tem filhos. e penso se elas, ao me escreverem, me dizem que, apesar de toda a fatalidade, ser mãe ou não ainda é matéria de decisão minha.