[N.108 | 2024]

Mulher imperfeita [fragmento]

Marina Apolinário

Terceira fuga
Procurando o fim do mundo

Às vezes eu sonho com essa história, talvez tenha sido ela que me trouxe até aqui, à escrita deste ensaio. Minha mãe sempre a contou do jeito de quem via de fora. Vó contava do sobrenatural, do jeito de quem viveu.

Minha avó descobriu a religião quando sofria de amor, diz que encontrou Deus e o acalanto para aguentar a vida que lhe foi imposta. Ela já tinha os meninos, era casada com vovô, tinha a casa verde no Campo Santa Cruz e a horta. Num domingo de igreja, ouviu o pastor dizer que o fim dos tempos estava próximo. Na manhã seguinte, decidiu ir atrás desse fim. Se vestiu e entrou no primeiro ônibus que ia de Santa Luzia para Belo Horizonte. Foi parar na capital, sozinha, sem saber muito bem qual era o destino. Sua única certeza era a de que o fim do mundo precisava ser encontrado. Desceu do ônibus na praça principal, que dava direto para a estação de trem.

O trem de ferro cruzava para outra cidade, era tudo que ela sabia. Tinha o dinheiro contado para entrar nele. Ela se lembra das cadeiras, que nesse tempo eram acolchoadas, e de que o trem tinha varanda. Sentou-se num banco lateral sozinha, com o olhar assustado de quem tinha tido coragem, mas não sabia ao certo de quê. Antes do trem dar partida, um homem sentou-se ao seu lado. Era um homem alto, magro, no formato de um esqueleto, de terno jeans claro, chapéu e o bolso cheio de notas de cruzado. Ela conta que nunca o tinha visto antes, mas que ele a chamava pelo nome. O homem tirou algumas moedas do bolso e disse que havia o suficiente para um lanche e dois vales-transporte, um para ela ir embora, outro para ela voltar caso seu marido não a aceitasse em casa. Ela argumentou que precisava ir até o fim do mundo, que o mundo estava acabando. Ele olhou gentilmente para ela e contou que Zé estava em casa com os meninos, esperando por ela. Ela se convenceu quando lembrou do que tinha deixado em casa, aceitou as moedas e desceu do trem. Comeu um enrolado na capital e voltou no último ônibus.

Chegou já de noite e encontrou meu avô e os filhos na porta, sentados no alpendre. Ele tinha a cara inchada de quem havia passado o dia chorando. Meu avô tinha cozinhado uma panela de tropeiro enquanto rezava para que as almas do mundo a trouxessem de volta. Ela perguntou se ele queria saber por onde ela tinha andado e ele disse que não, que estava feliz que ela tinha voltado e só queria cuidar das pernas dela, que estavam sangrando de tanto andar. Ela comeu e se deitou, sem ter encontrado o fim do mundo a tempo.

Vovó amanhece no dia seguinte e decide caminhar até a fazenda da Enjeitada. Sai de casa ainda de camisola. Caminha por longas horas, até chegar na estrada de Taquaraçu e descer a Enjeitada. Procura sua mãe, que a essa hora já sabia do sumiço e da lua da filha que tinha virado. Vó conta o que aconteceu, fala de tudo que viu e do homem que encontrou. De olhos arregalados, a mãe pergunta a estatura da alma que ela havia encontrado, e responde dizendo que não foi gente humana que a ajudou. A única pessoa na terra que usava aquele terno jeans e sempre tinha moedas no bolso já havia partido fazia 33 anos, era o avô dela, pai do seu pai. Ele vivia com dinheiro no bolso para emprestar ao povo da cidade. Minha avó nunca entendeu o que lhe aconteceu naquele dia, mas sabe que não foi algo dos humanos, e agradece a Deus por ter sido a única a se encontrar com seu avô.

Essa mesma história eu já conhecia de outro jeito, mãe a contava sempre que se desentendia com minha avó. Na outra versão, vovó vai embora de casa para procurar o fim do mundo e o amor proibido, some o dia inteiro e reaparece porque meu avô passou o dia debulhando-se em lágrimas e cozinhando as comidas favoritas dela para que ela sentisse o cheiro e quisesse voltar.