[N.64 | 2023]

Eu não estou escrevendo

Maíra Tukui Ribeiro

Eu não estou escrevendo um diário sobre o exílio espontâneo que realizei pela América do Sul, começando pela Amazônia. Este diário poderia ser uma etnobiografia, contando sobre meu encontro com Dona Mariana, uma pajé Macuxi, e meu batismo como Tukui.
Não estou escrevendo a dramaturgia do projeto de criação em dança “Maíra – um romance (auto)etnográfico”, inspirado no livro homônimo de Darcy Ribeiro e nas minhas derivas genealógicas.

Não estou escrevendo sobre a residência artística na Europa, e de quando busquei minhas raízes italianas. Um encontro parental emocionante numa cidadezinha do interior serrano da Itália, Castel Frentano, que de tão bucólica parecia parada no tempo. A vila se mobilizou para ajudar a encontrar meu parente, e conseguimos!

Não estou escrevendo sobre a vinda da minha bisavó com minha avó, de navio para o Brasil, em plena Segunda Guerra Mundial. Que poderia se desdobrar em contos, um deles se chamaria “Navio para a República das Araras”, pois, segundo minha avó, a parte rica da família foi para a América do Norte e a parte pobre para o Brasil ou a República das Araras.
Não estou escrevendo cartas para os amores que encontrei nas minhas andanças, entretanto, nos correspondemos por telepatia.

Não estou escrevendo um tratado conjugal, embora tente tratar sobre a criação compartilhada com o pai do meu filho.

Não estou escrevendo um testamento porque meus bens mais preciosos compartilho em vida: meu amor, alegria e criatividade.

Não estou escrevendo sobre o processo revolucionário que vivo com os meus filhos, de microdescolonização cotidiana. Não estou teorizando sobre isso, nem compilando as minúcias desse labor, nem elaborando um manifesto de uma maternagem decolonial.

Não estou escrevendo as receitas que venho descobrindo na alquimia culinária de preparar alimentos sem açúcar, sem laticínios e sem glúten.

Não estou escrevendo o artigo “Mãetodologia de pesquisa: uma metodologia trans(in)disciplinar”, por Maíra Tukui Ribeiro.

Não estou escrevendo uma novela kafkaniana sobre as metamorfoses de uma mãe solo em isolamento social na pandemia da covid-19, que também poderia ser uma fábula, intitulada “O surto pandêmico da mãe monstro”.

Não estou escrevendo o livro “Ensaio sobre a visão”, explicitando a supremacia da visão na cultura ocidental e toda implicação social que dela acarreta.

Não estou escrevendo poesias concretas, como passatempo, sobre a abstração do tempo:

S E M A N A S E M T E M P O
E M A N A S E M T E M P O
M A N A S E M T E M P O
A N A S E M T E M P O
N A S E M T E M P O
A S E M T E M P O
S E M T E M P O
E M T E M P O
T E M P O
T EM
P A S S A T E M P O

Não estou escrevendo a biografia “Maíra, uma errância dançarina”. Seria eu uma escritora errante que dança com as palavras ou uma dançarina delirante que escreve com o corpo?
Gosto de etnografar, cartografar, coreografar, corpografar, mas não estou escrevendo.

Eu não estou escrevendo em palavras, mas escrevo com meu corpo. “Minha pele é linguagem e a leitura é toda sua.”

Este texto faz parte do Caderno de escritura e maternidade 01 ‘Te coloco onde você não está’, publicado em maio de 2022, fruto da oficina de leitura e escrita línguamãe, com ciclos realizados entre 2021 e 2022, organizados e guiados por Gabriela do Amaral e Cacau Araújo. O Caderno é um projeto cultural, pedagógico e de distribuição gratuita.