[N. 24 | 2023]

Definir-se mãe em tempos de pandemia 

Josinélia Chaves Moreira

Ser Mãe é sonhar cada vez mais alto
Minha vida não acabou
Ela recomeça todos os dias

Poesias Pós-parto
Priscila Obaci

No dia 04 de julho de 2017, dois traços vermelhos me enunciavam Mãe. A palavra mãe, ainda em processo, ecoou, rasgou e feriu-me como uma navalha, enquanto tentava não acreditar no que via. Palavras pularam da minha cabeça, me olhando e insistindo em me penalizar, em me asfixiar: camisinha, pílula do dia seguinte, anticoncepcional – tanta coisa e, mesmo assim, fui abraçada pela desinformação? “O que vai ser de mim agora? E o doutorado? E os concursos? E os meus sonhos?” Essas frases me interrogavam, entoavam como um pouso desordeiro, de emergência, como nos velhos tempos em que a ansiedade tomava o meu corpo, impedindo-me de alçar voos – apenas me comia, comia. A velha sabotagem, o autoboicote que me impedia de acreditar que era possível. Como tornar-me mãe e seguir com a minha vida e com os meus planos? A minha memória ancestral foi amordaçada pelo meu inconsciente colonizado, que me deixou por um bom tempo com esse buraco do vazio, da culpa, do julgamento, da vergonha, do escândalo. Um desafio que (re)elaborava em meu corpo os traços, os traumas e o banzo de uma ancestralidade sequestrada, mutilada e seca da potência do ser mãe, fonte de vida para toda a comunidade.

A enunciação da palavra “Mãe” marca e redimensiona a minha existência, assim como a de muitas mulheres, sobretudo negras, pela movência do corpo e pela capacidade de (re)inaugurar “vidas”, contornar desafios e impor caminhos outros de fuga e de (re)conhecimentos. Além disso, experienciamos no e com o corpo as fissuras da falta de políticas públicas que atendam as múltiplas demandas que atravessam as mães e suas crianças, especialmente em tempos de crise sanitária, como a que estamos vivendo com o coronavírus.

Desde então, os desafios, as descobertas, as vivências e as experiências têm me acordado e exigido novas posturas de enfrentamento da vida, assim como práticas de (des)construção do que sou – sobretudo das imagens definidas e romantizadas de maternidades, de mães, de maternagens e do que significa ser mulher negra, periférica, que tem no próprio corpo a interseccionalidade tatuada. Sigo em busca de uma imagem autodefinida, uma construção do “eu” que me conceda o poder da humanidade, o direito de ser negra e mulher e mãe, para viver e experienciar a maternidade e a maternagem com a minha filha.

Pandemia e maternidade

No ano de 2020, essas questões retornaram com força em meu processo de construção do que é para mim ser mãe de uma criança de dois anos. Uma crise sanitária causada pelo surto de coronavírus (SARS-CoV-2), causador da Covid-19, mudou drasticamente nossa vida, em todos os sentidos. Além disso, a Covid-19 desnudou o quanto uma determinada ideia de nação, fundada e estruturada nas desigualdades raciais e sociais, assolam o Brasil. Em março, a Covid-19 foi caracterizada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como uma pandemia e uma das medidas adotadas para conter a propagação da doença foi o isolamento social. Com a suspensão das atividades acadêmicas, o que inclui o serviço creche,1 que atende minha filha desde os seis meses de idade, nos deparamos com uma outra realidade, que exigia mais uma vez repensar nossos papéis de mãe e de pai de uma criança – uma mãe doutoranda, um pai mestrando, ambos em home office.

Por um momento, pensamos em ir para a casa dos meus pais no interior, como sempre faço quando termina o semestre e, concomitantemente, encerram-se as atividades da creche. Logo, porém, desistimos, porque o governo do estado suspendeu os transportes interestaduais para conter a pandemia, e não temos carro. Além disso, a cidade dos meus pais não possui uma estrutura de saúde pública especializada, realidade de muitos interiores no Brasil. A saída foi adequar nossa rotina a essa nova realidade, buscando conciliar as atividades acadêmicas, profissionais e familiares. O que não tem sido fácil, especialmente por se tratar de uma criança de 2 anos e 5 meses, que requer uma atenção redobrada.

O cenário me trouxe de volta os velhos e novos sentimentos de uma mãe em construção, doutoranda, no terceiro ano do curso e com uma qualificação atrasada por vários motivos, que incluem um processo de ostracismo e de não produtividade, que se devem, sobretudo, a um inconsciente colonizado que me culpabiliza por tudo e por todos, até mesmo pelos vazios que encobrem meu corpo. Escrever a tese, do momento em que me vi grávida, passando por quando pari, até este exato momento, tem sido um gesto de despir-me, um processo de limpar as cicatrizes e feridas que têm me impedido de escreviver a maternidade.

Algumas perguntas ecoaram e ecoam ainda: por que não consigo escrever sobre a maternidade? Quais questões estão imbricadas nessa interdição? Essas indagações têm me levado para dentro da narrativa do conto “Olhos d’água”, que dá título a um livro de Conceição Evaristo e que colaborou com meu processo de retorno para casa, em busca do rosto de minha mãe, de outras mães, de todas as mulheres da família e de minhas ancestrais. Sei que tenho mães, estou me tornando uma e, mesmo assim, as palavras se amordaçaram, fugiram e pactuaram pelo não-dito, não querem fazer parte do processo de descobrimento da mãe que me impuseram; da mãe que está retornando ao útero ancestral da experiência, de uma “gramática ancestral de África e diáspora”, nas palavras de Carla Akotirene; da mãe que está sendo gestada nesse processo dor-escrita, no (a)feto de cada experiência-vivência, para a instrumentalização teórica-metodológica de um “útero” místico e pulsante.

O corpo-tese que se estrutura neste caos, por fora e dentro, tem levado um tempo-dor para se formar, acompanhado da procrastinação, uma luta contra o esvaziamento do ato de escrever. Tenho feito inúmeras atividades, adiando uma relação que me é tão constrangedora e invasiva, um lugar-incômodo de alguém que não tem autoridade para exercer essa função, a de uma intelectual. Nesse período, mesmo sabendo da urgência e da necessidade de colocar para fora os nós que atravessam meu corpo, queimam minha pele, dei-me o direito de pensar, chorar, desafiar e iniciar um processo de cura das dores de uma vida de autossabotagem e autoboicote que ferem a minha existência e resistência enquanto mulher-negra-filha-mãe. Foi quando decidi por procurar ajuda, por meio de terapias, que percebi a necessidade de nomear essas dores, de entender quem sou diante de feridas que estavam encobertas, desde criança, mas foram abertas com a gravidez.

Por conta da pandemia e do aumento dos nossos custos de vida, no entanto, tive que suspender esse processo tão importante, que colaborava na minha autorrecuperação pela (re)construção de um autoamor e de rituais de autocuidado. Toda essa situação agora se avoluma no isolamento, mesmo com a parceria de um companheiro que materna comigo. Minha filha tem exigido mais atenção, um tempo de brincadeiras e de atividades que sobrecarrega o meu tempo e o do meu companheiro.

Meus sentimentos continuam orbitando em torno da culpabilização, sobretudo pelos padrões e mitos construídos em torno da maternidade, que não se relacionam com as diferentes experiências e a ambivalência de muitas mulheres – o que revela um universo contraditório e complexo. A maternidade é contraditória não apenas pelos sentimentos, mas também pelas desigualdades e opressões que atravessam os corpos de mulheres negras. Dessa maneira, tenho sofrido e me penalizado por uma série de comportamentos da minha filha, muitos advindos do momento que estamos vivendo, outros ligados ao fato de que cada criança tem seu tempo, que precisa ser respeitado. A ausência de um número maior de palavras e frases; a quebra de rotina que tem afetado o sono, a alimentação, o brincar; o nervosismo e a irritabilidade (tanto nossos quanto dela) diante das birras e da necessidade da nossa presença; a exposição por um longo tempo à televisão e ao celular; o desfralde; os inúmeros choros e gritos durante a troca de fralda e do banho; o estresse. Tudo isso sem que eu encontre tempo de dedicação para brincar e me divertir com ela, sem que me livre da consciência de que poderia escrever aquele artigo ou uma seção da tese.

Um encontro com a maternidade possível

Estamos chegando ao quarto mês de isolamento, as incertezas nos assombram sobre o que será do futuro do presente, como viveremos depois desse “novo normal” que nos convoca a mudanças de paradigmas e a transformações urgentes na sociedade. Transformações que precisam acontecer imediatamente, mas para as quais os compromissos da temporalidade ocidental nos impedem de olharmos com profundidade. Exigência de uma vida sem artificialidade e com outro modo de funcionamento, que acolha a diversidade, a “pluralidade das formas de vida, de existência e de hábitos”, como aponta Ailton Krenak.

O coronavírus coloca em xeque uma humanidade que se baseia na desumanização de outras, a exemplo da necropolítica, de que nos fala Achille Mbembe, de um Estado que decide por fazer morrer os corpos negros. Temos acompanhado nos noticiários e nas redes sociais as inúmeras mães que choram, sofrem e morrem sobre os corpos de seus filhos assassinados pelo racismo estrutural, que mata não apenas o jovem, mas também aniquila, extermina e fere sua mãe, seu pai, seus irmãos e suas irmãs, parentes e amigos/as, toda uma comunidade que continuará sofrendo com a enxurrada de mortes, opressões e desigualdades alinhavadas pela lógica da branquitude elitista, que se considera o padrão social. Que, de alguma maneira, me mata também, enquanto mãe negra que experiencia esses sentimentos indiretamente.

“Quem pariu Mateus que balance”, “ser mãe é padecer no paraíso”, “quando nasce um filho, nasce uma mãe”, “mãe desnaturada”, “aproveite para dormir agora, porque depois não dorme mais”, “mãe que é mãe não abandona seu filho”, “só sabe o que é ser mãe quando se torna uma”, “boa-mãe”, “a culpa é da mãe que não soube criar”, “que marca de mãe é você?”, “mãe louca, histérica e estressadinha”, “quem mandou abrir as pernas? Deveria ter pensado antes”. Essas são algumas das falas que ouvi enquanto estava grávida e depois que pari. E elas voltam com força neste período de pandemia. Todas elas, assim como inúmeras outras que não foram citadas, dizem do quanto a maternidade sempre foi tratada como tema universal, de forma sexista e racista, por mais que “os processos biológicos que a envolvem permanecem sendo exclusivamente vividos pela mulher”.2 Além disso, essas expressões naturalizadas e essencializadas representam uma das formas de aprisionamento e controle do corpo da mulher, assim como a manutenção de uma imagem idealizada do que é ser mulher, construída de acordo com padrões misóginos e patriarcais. Elas evidenciam também que a maternidade é um empreendimento capitalista, tendo em vista as cobranças que surgem de diversos campos – legal, social, econômico, físico e emocional –, alicerçadas pela família, pela comunidade e pelo Estado, sem levar em conta a ausência de redes de apoio e de meios para atender aos anseios das mães.

Diante de tudo isso, meu exercício de maternidade, neste contexto pandêmico, tem evocado rasuras e dobras de (re)existências e de (auto)descolonização do meu corpo, principalmente pelas consequências que as desigualdades e vulnerabilidades socioeconômicas, políticas e culturais imprimem em corpos negros, a precariedade e a precocidade de tudo. Lutar tem sido o verbo conjugado pelas muitas mulheres de minha família e continuará sendo pelas próximas gerações que despontam, pois ainda temos muito por conquistar.

O meu pacto comigo mesma é acordar e enfrentar todos os dias os medos e desafios que me consomem, pela minha mãe, cumieira da casa, meu porto seguro e meu apoio desde quando minha filha nasceu; pela mãe negra que encontrei no ônibus, chateada, inconformada, com lágrimas nos olhos, porque não conseguiu visitar o filho, preso no Conjunto Penal de Vitória da Conquista; pela mãe negra e mãe solo que lida diariamente com a frustação e com a falta de amparo do Estado, de afeto e de cuidados; por todas as mães em grande diversidade que carregam no colo, na pele, as dores e os dissabores dos padrões impostos de maternidade, que seguem os interesses da ideologia patriarcal e racista.

Minhas dores, acentuadas neste período, envolvem não apenas o momento de caos da pandemia, mas também aquilo que estava encrustado na pele, abrigado e escondido de mim mesma. Por isso, considero que há também uma produtividade nesse desamparo, por me fazer olhar para tudo isso e pensar em formas de superar e enfrentar tantos desafios; por me fazer entender que sou uma intelectual, mas que não posso e nem devo perder de vista que tenho uma criança que me convoca a viver o momento de construção dos lugares de filha, de mãe, das descobertas e experiências que envolvem a maternidade e a maternagem. O momento pede a (re)elaboração de uma imagem autodefinida de maternidade, o meu ponto de vista sobre o que significa ser mãe, um empoderamento individual e subjetivo de construção do meu “eu”.

  1. Ressalto aqui o quanto as Políticas de Cotas, assim como as de Ações Afirmativas e de Assistência Estudantil, foram importantes para o alcance da minha trajetória intelectual, enquanto mulher negra, interiorana, oriunda de família de trabalhadores rurais. Se não fosse o Movimento Negro e sua luta por uma política de reparação, eu não teria quebrado o círculo vicioso do plantio e da colheita de café, estaria até hoje manejando os instrumentos da terra. Adentrar foi uma fissura, mas continuar na UFBA só foi possível pelas políticas de assistência estudantil. Morei durante quatro anos na Residência Universitária da UFBA, a RIII, no Canela. Depois de sete anos, voltei a ser assistida pela Política de Assistência Estudantil e Ações Afirmativas da UFBA (PROAE), com o serviço creche. Em tempos tão duros e difíceis, não posso deixar de mencionar a importância desse espaço.
  2. Vania Maria Ferreira Vasconcelos. No colo das Iabás: Raça e gênero em escritoras afro-brasileiras contemporâneas. 2014. 228 f. Tese (Doutorado em Literatura e Práticas Sociais) — Universidade de Brasília, Brasília, 2014.