[N. 26 | 2023]

Sobre morrer

Luana de Oliveira

Quantas vezes você já morreu? Minha vó costumava dizer que a gente que é pobre já nasce morrendo. Se for mulher então, aí é que fica pior: nasce culpada e morrendo. Eu cresci com isso martelando na minha cabeça. O que seria pior? A culpa ou a morte? Até hoje, não sei. Na primeira vez que senti a morte, ela veio fantasiada de amor e proteção, talvez por isso tenha conseguido apagar o brilho da alma e cortar a carne. Nenhuma gota de sangue foi derramada. Sou uma mulher forte! É assim que eu ouço, primeiro de mim, depois de outros e outros e outros… Primeiro de outros e depois de mim. Tenho dificuldade de assimilar o mal. Talvez porque ele sempre tenha vindo de dentro, da casa, da família, do amor. Quando era criança, gostava de brincar de cuidar. Cuidava da casa, dos irmãos, dos primos, preparava jantares surpresa para minha mãe. Uma vez preparei arroz e salada de ovo cozido com batata. Perto da hora dela chegar, apaguei as luzes e acendi duas velas. Em nossa casa, tinha muitas velas brancas, coloridas. Para o santo, sempre havia uma acesa. Foi a primeira vez que ela trouxe uma pizza. Uma das noites mais felizes!

Na casa velha repleta de rachaduras, o chão era de cimento queimado, aquele que chamam de vermelhão, brilhando da cera em pasta, aplicada com meias usadas e lustrado com uma blusa de lã cinza. Telhas furadas, janela de madeira fechada com tramela e porta de papelão. O banheiro sem reboco, com a porta de entrada do lado de fora da casa, servia de abrigo para as lesmas e, em dias de chuva, abrigavam-se ali também a Titita e a Preta. Uma vez, elas brigaram feio. Titita perdeu um dente e a Preta ficou sangrando. Choramos muito. Foi difícil apartar a briga. Minha mãe gritou, jogamos água, colocamos um cabo de vassoura entre as briguentas, mas nada funcionou. Só pararam quando já estavam exaustas. Aquilo durou mais de meia hora, contada de relógio!

Durante uma semana, tomamos banho de caneca e comemos à luz de velas. A eletricidade foi cortada. Havia um punhado de contas acumuladas. Nos divertíamos queimando fios do nosso cabelo na chama acesa. Os dias passaram rápido. Na noite em que a luz voltou, assistimos à Tieta. Ah, Tieta! Gostava de sua ousadia e coragem, mas também me divertia com o conservadorismo de sua irmã Perpétua, que guardava numa caixa o órgão genital do marido falecido. Lembro-me de uma cena dela, no fundo de um ônibus, segurando a tal caixa. Eu era criança e não entendia muito bem aquilo, mas imaginava que coisa boa não havia de ser. Havia um ar de mistério nas cenas com Perpétua e a caixa misteriosa. Naquele tempo, as novelas eram a principal forma de entreter as famílias brasileiras, especialmente as mais pobres como a nossa. Minha mãe só conseguia assistir aos capítulos às quartas-feiras. Nos outros dias, tínhamos compromisso no terreiro. Tentávamos acompanhar a história pelos comerciais e com a vizinhança. Era triste sempre perder o último capítulo. 

Falávamos de que mesmo? Ah sim, da morte. Perdoe-me! É que, às vezes, me perco na tentativa de recuperar as memórias da infância. Também não guardo muitas, apenas alguns flashes me vêm à mente quando penso em quantas vezes já morri.  

A gente que é pobre já nasce morrendo! Minha vó tinha razão e eu percebi isso no início da minha adolescência. A mesma que me colocou nesse mundo, me tirou dele tantas vezes que nem consigo contar. Dizia que eu ia estudar, fazer faculdade para ser professora. Ela também teria sido uma, se não tivesse engravidado quando cursava o segundo ano do magistério. Tempos difíceis! Mas quais não são?

Dia desses morri novamente. Ele me abandonou na casa com as duas crianças. Disse que ia voltar pra casa da mãe. Tomou banho, perfumou-se e saiu. Não disse pra onde ia nem se voltaria. Apenas foi! Eu, paralisada, continuei ali, sentada no sofá macio e confortável, a televisão ligada, a casa limpa de dar gosto! Era uma manhã de sábado. O dia estava ensolarado. As crianças tinham ido passar o fim de semana na casa do pai. 

Levantamos da cama e fomos para o sofá, como era de costume. Adorávamos esticar as manhãs abraçados no sofá, assistindo a qualquer coisa que estivesse passando. Daquela vez, apenas nos abraçamos e ficamos ali, esperando sem saber o quê. Talvez eu já soubesse que era o fim, mas minha dificuldade de assimilar o mal não me informou o fim que se aproximava. Senti saudades das noites de amor, das férias em Arembepe, do mar de Salvador, dos domingos agitados com as crianças brincando na banheira azul, dos almoços em família, das reuniões com os amigos, das vezes que nos reuníamos só para conversar sobre Marx ou Nietzsche e os sentidos da vida. A saudade que mais doía era a do que não havia vivido. Essa foi a que me matou, mais uma de tantas vezes que morri. Eu me senti fracassando mais uma vez e me questionava sobre a culpa. O que eu havia feito de errado desta vez? 

Lembrei-me de minha mãe, da sua força, do seu otimismo, da fé que ela tinha na vida, nos Orixás, na promessa de dias melhores… Segui! Também não tinha outra alternativa. Não podia ficar ali, morta da alma. O corpo era requisitado pelas urgências da vida cotidiana.

Quando éramos crianças, aos finais de semana, ela colocava um disco do Martinho da Vila ou da Alcione e os dias eram muito alegres, regados a samba, café e esperança. Ela sempre dizia: um dia, as coisas vão melhorar! A gente não há de morrer nessa miséria. E dava um de seus sorrisos mais largos. Era uma mulher e tanto, minha mãe.