[N.34 | 2023]

Carta de uma mãe que não quer mais

Tantas Vária

Ontem não deu para lhe escrever. A gente pensa que vai ter tempo quando chegar em casa, né? Sabe, quando me pediu para falar sobre a maternidade de filhos especiais, comecei a pensar sobre o assunto. É louco isto, porque penso nisso há quase trinta anos, desde quando nasceu meu primeiro filho, João, com síndrome de Down e um problema cardíaco. Ele faleceu aos oito meses de idade. Engravidei de Ingrid – a que deus curou, como diz uma colega minha de trabalho. Mais saudável impossível. Depois, veio Maria Clara que, a partir do quarto mês, começou apresentar os sintomas de uma síndrome genética neurodegenerativa. 

Por que, então, foi tão sofrido para mim pensar neste texto? Porque foi a primeira vez que parei para pensar em mim, que me perguntaram sobre mim. Descobri que a maternidade não foi boa para mim, me maltratou e me traumatizou. Descobri que odeio ser mãe. Não gosto da maternidade. Não sou capaz de cuidar dessas pessoas. Ingrid, na pandemia, teve um surto psicótico, ela é bastante disfuncional socialmente, apesar de aparentemente ser muito saudável. Clarinha está, ao que parece, próxima do fim de suas forças, mais debilitada fisicamente, praticamente não se movimenta, muito atrofiada, quase não fala, perdeu muita massa muscular. 

Isso tudo passo praticamente sozinha. O meu ex-marido, que é praticamente meu marido ausente, mora no interior, um Dom Quixote, que não pode morar conosco porque não “aguenta” cidade grande. Eu me sinto enganada, roubada, traída. Sim, eu amo minhas filhas, demais. Só não queria ser mãe delas. Cuido muito bem delas, sim. Só não gosto de fazer isto, de tomar as decisões, de vê-las definhar e não saber o que fazer. Estou fazendo terapia e agora com acompanhamento psiquiátrico também. 

Sei que não posso ser o único testemunho de mãe de deficientes, não seria justo com as mães que amam a maternidade. Ainda que eu mesma, anos atrás, não tivesse parado para pensar em mim e, talvez por isso, não me sentisse assim. A maternidade foi cruel comigo e não posso amá-la mais. Eu estava muito mal naqueles primeiros dias que me dei conta disso, agora estou melhor. Estou me perdoando. Eu tinha pensado em escrever o texto em forma de uma carta para mim mesma do futuro, mas não para daqui a dez, quinze anos. Eu pensei em escrever um texto para quem eu for na próxima vida. Dizer a ela que, em hipótese alguma, tivesse filhos, que nunca se casasse. Eu sinto que não há mais saída para quem sou nesta vida. Claro, vou ter alguma felicidade, alguns momentos bons, mas essa carga vai pesar em mim até o fim desta vida. Ingrid vai continuar sua vida me apavorando com suas ilusões deturpadas. Clarinha vai sofrer até quando não tiver mais forças para viver, eu vou sofrer junto com ela e depois vou sofrer sozinha sua falta. Isso é muito pesado. Não se assuste, esta não é uma mensagem de alguém que desistiu de viver ou de uma pessoa que vive amargurada. Pelo contrário, vivo de forma leve e sorrio quase todo o tempo, sou amorosa com minhas filhas e com minha ótima e parceira família. Faço bem meu trabalho e convivo bem com meus colegas. Esta consciência do que é minha vida é que é nova. Mas aceito-as, como aprendizado.

Aprendi muito e melhorei demais como pessoa, sou muito grata por isto e sinto muito orgulho da pessoa que me tornei. Levo uma vida fodida, fodida demais. Mas gosto demais de mim para querer trocar por outra. 

É isso.

Obrigada por pensar em mim. É disso que precisamos.

Um abraço!