[N.41 | 2023]

inventário isolado

Babi Amaral

dia 01

dizem que isso vai durar pelo
menos três meses.

dia 02

falei com gorete e ela disse que queria continuar vindo trabalhar.

sobreviveremos.
ela e eu.

dia 03

trabalhei, almocei e, de sobremesa, brinquei com as crianças. não
sinto saudade de correr tanto.

dia 04

hoje francisco ensaiou andar. lembrei de quando helena andou
pela primeira vez e gorete me enviou um vídeo.

dia 06

às vezes sinto que o meu colo não é suficiente.
luaminguante
cabeçacheia

dia 07

alguns dias parecem milagres. céu, corpo, água, luz
e um amor que sai pelos poros.

dia 08

helena disse que a pandemia foi boa
porque agora eu almoço todo dia
em casa.

{ para lembrar } apesar de tudo, há sempre
algo maravilhoso acontecendo.

dia 10

eles me cansam e me salvam na
mesma proporção.

dia 11

seis anos de helena e eu ainda não me acostumei com esse
acontecimento todo.
filho cresce e leva a gente junto.

dia 13

as noites têm sido maiores.
os medos também.

dia 14

entre um zoom e outro, eu vivo.

dia 19
helena acordou de um pesadelo e disse que não quer morrer.*

*alguém quer?

dia 40

o isolamento desola.

dia 41

não dormi bem esta noite.

dia 43

não dormi bem esta noite.

dia 47

não dormi nada esta noite

dia 51

hoje ganhei bolo e carta.
amigo é casa.

dia 52

li uma matéria falando que o vírus pode estar nos alimentos.
joguei o bolo no lixo e chorei durante o banho. ninguém viu.

dia 68
o vizinho faz churrasco e samba.
eu faço de tudo.

dia 73

acabei com três velas só hoje.
haja reza.

dia 78

sinto falta de silêncio.

dia 82

acabou:
ração,
fralda,
paciência.

dia 88

helena me perguntou se falta muito
t e m p o para isso acabar.
na falta de resposta, fiz brigadeiro.

dia 94

hoje mais um menino morreu.
mais um menino preto morreu.
levei as crianças pra minha cama e chorei como há tempos
não chorava.

dia 100

cem dias que não sinto o cheiro da minha mãe.

dia 112

estou exausta.

dia 114

francisco chorou muito.
eu também. depois que
passou, aproveitei para
colocar o feijão de molho.

dia 145

sinto saudade de tudo.

dia 151

festa online com bolo de banana.

dia 152

minha saudade anda apertada.

dia 153

cem mil vidas perdidas e eu
aqui isolada,
reclamando da saudade.

dia 168

hoje eu me peguei pensando na possibilidade disso nunca acabar.
como é que se vive com o nunca?

dia 170

helena acordou me perguntando se morrer dói. respondi que não
sabia porque eu nunca tinha morrido.

achei melhor mentir

dia 178

um cansaço que sai pelos buracos do corpo e vidas perdidas e uma
violência sem fim e um cansaço e morte e morte e morte e eu aqui
tentando não morrer todo dia um pouco.

dia 191

tenho sentido tudo.

dia 192

ontem chorei lendo ana cristina césar.

dia 228

qualquer palavra – saudade, cansaço – se repetida muitas vezes
começa a perder o sentido.

dia 235

é possível uma pessoa amar seus filhos e não gostar de ser mãe?

dia 236

não me lembro da última vez que fiquei sozinha.

dia 240

helena me disse que prefere aprender com a professora do que
comigo.
não levei para o lado pessoal.

dia 242

faz três dias que sonho com meu pai.

dia 243

hoje a gente deitou no chão do quintal pra ficar olhando as
nuvens. tem dia que parece milagre. eu repito feito reza que é
para não esquecer.

dia 244

escrever como forma de organizar o mundo.

dia 257

água com limão, cúrcuma, vinte gotinhas de própolis.

dia 280

minha saudade anda espalhada em pequenos espaços geográficos
onde pedaços do meu coração residem.

dia 298

o mundo realmente está
tremendamente esquisito.

dia 320

quem sou eu na fila da vacina?

dia 321

pg morreu.
não trabalhei.
não almocei.
hoje eu não consigo.

dia 323

voltei a escutar música.

dia 324

tem dias que parecem milagre.

dia 330

a sensação de estar num parque de diversões ruim presa numa
montanha-russa sem fim.

dia 378

vez ou outra enlouquecer numa tentativa de não enlouquecer.

dia 401

tenho tomado muita água e falado de amor.

dia _