dia 01
dizem que isso vai durar pelo
menos três meses.
dia 02
falei com gorete e ela disse que queria continuar vindo trabalhar.
sobreviveremos.
ela e eu.
dia 03
trabalhei, almocei e, de sobremesa, brinquei com as crianças. não
sinto saudade de correr tanto.
dia 04
hoje francisco ensaiou andar. lembrei de quando helena andou
pela primeira vez e gorete me enviou um vídeo.
dia 06
às vezes sinto que o meu colo não é suficiente.
luaminguante
cabeçacheia
dia 07
alguns dias parecem milagres. céu, corpo, água, luz
e um amor que sai pelos poros.
dia 08
helena disse que a pandemia foi boa
porque agora eu almoço todo dia
em casa.
{ para lembrar } apesar de tudo, há sempre
algo maravilhoso acontecendo.
dia 10
eles me cansam e me salvam na
mesma proporção.
dia 11
seis anos de helena e eu ainda não me acostumei com esse
acontecimento todo.
filho cresce e leva a gente junto.
dia 13
as noites têm sido maiores.
os medos também.
dia 14
entre um zoom e outro, eu vivo.
dia 19
helena acordou de um pesadelo e disse que não quer morrer.*
*alguém quer?
dia 40
o isolamento desola.
dia 41
não dormi bem esta noite.
dia 43
não dormi bem esta noite.
dia 47
não dormi nada esta noite
dia 51
hoje ganhei bolo e carta.
amigo é casa.
dia 52
li uma matéria falando que o vírus pode estar nos alimentos.
joguei o bolo no lixo e chorei durante o banho. ninguém viu.
dia 68
o vizinho faz churrasco e samba.
eu faço de tudo.
dia 73
acabei com três velas só hoje.
haja reza.
dia 78
sinto falta de silêncio.
dia 82
acabou:
ração,
fralda,
paciência.
dia 88
helena me perguntou se falta muito
t e m p o para isso acabar.
na falta de resposta, fiz brigadeiro.
dia 94
hoje mais um menino morreu.
mais um menino preto morreu.
levei as crianças pra minha cama e chorei como há tempos
não chorava.
dia 100
cem dias que não sinto o cheiro da minha mãe.
dia 112
estou exausta.
dia 114
francisco chorou muito.
eu também. depois que
passou, aproveitei para
colocar o feijão de molho.
dia 145
sinto saudade de tudo.
dia 151
festa online com bolo de banana.
dia 152
minha saudade anda apertada.
dia 153
cem mil vidas perdidas e eu
aqui isolada,
reclamando da saudade.
dia 168
hoje eu me peguei pensando na possibilidade disso nunca acabar.
como é que se vive com o nunca?
dia 170
helena acordou me perguntando se morrer dói. respondi que não
sabia porque eu nunca tinha morrido.
achei melhor mentir
dia 178
um cansaço que sai pelos buracos do corpo e vidas perdidas e uma
violência sem fim e um cansaço e morte e morte e morte e eu aqui
tentando não morrer todo dia um pouco.
dia 191
tenho sentido tudo.
dia 192
ontem chorei lendo ana cristina césar.
dia 228
qualquer palavra – saudade, cansaço – se repetida muitas vezes
começa a perder o sentido.
dia 235
é possível uma pessoa amar seus filhos e não gostar de ser mãe?
dia 236
não me lembro da última vez que fiquei sozinha.
dia 240
helena me disse que prefere aprender com a professora do que
comigo.
não levei para o lado pessoal.
dia 242
faz três dias que sonho com meu pai.
dia 243
hoje a gente deitou no chão do quintal pra ficar olhando as
nuvens. tem dia que parece milagre. eu repito feito reza que é
para não esquecer.
dia 244
escrever como forma de organizar o mundo.
dia 257
água com limão, cúrcuma, vinte gotinhas de própolis.
dia 280
minha saudade anda espalhada em pequenos espaços geográficos
onde pedaços do meu coração residem.
dia 298
o mundo realmente está
tremendamente esquisito.
dia 320
quem sou eu na fila da vacina?
dia 321
pg morreu.
não trabalhei.
não almocei.
hoje eu não consigo.
dia 323
voltei a escutar música.
dia 324
tem dias que parecem milagre.
dia 330
a sensação de estar num parque de diversões ruim presa numa
montanha-russa sem fim.
dia 378
vez ou outra enlouquecer numa tentativa de não enlouquecer.
dia 401
tenho tomado muita água e falado de amor.
dia _