[N.42 | 2023]

Fresta

Barbara Lito

Fecho os olhos. Inspiro fundo, retenho o grito – tenho exercitado firme para não pedir as coisas aos berros.

Eu e ele. Um ano e um mês. No início, eu me sentia num desses filmes de cataclismos, em que os personagens têm que se esconder, juntar provisões, acuados em bunkers e sem saber muito bem como anda o resto do mundo lá fora. Nosso isolamento é Nutella, apesar de todo o perrengue. Nesse tempo, perdi a conta de quantas rotinas ocasionais negociamos, tentando manter alguma espécie de sanidade dentro dessa nova normalidade.

Aqui e agora fomos criando um mundo desse caos, do encontro das minhas ressonâncias com as dele, dos nossos desejos, ansiedades, raivas, dos nossos projetos (des/re) feitos, nossas frustrações, nossos medos, nossas bobeiras, nossos sonhos, nossas concretudes.

Faz seis meses que ele não abraça o pai, que está na linha de frente de combate à pandemia.

Ele deixou o cabelo crescer nesse tempo. Também aconteceu (meio de repente) a grande virada dos seis para os sete anos. Naquela velocidade que é das crianças, parecida com a dos fungos, vi brotar de dentro do escuro dele um humor novo, novas questões filosóficas, a escrita espelhada, a fluência na leitura, o aprofundamento nos enigmas humanos. Os dentes ainda não caíram. Eu, que não deixo de ficar surpresa com a maravilha dos estirões, vou me adaptando enquanto piso em mini Legos, que se escondem em todos os cantos improváveis da casa e se reproduzem durante a noite, que se espalham por todo o horizonte visível. Mini Legos, como rastros de um corpo de menino-ciclone.

Ele vê uma mãe às vezes aflita, que às vezes grita, que chora pouco, que sente dor nas mandíbulas sempre, que não gosta de brincar de brinquedo, que ama o abraço sem pressa de todas as manhãs e prepara os sustos mais originais. Que conta coisas absurdas como se fossem verdades e não consegue ficar séria para que ele acredite por mais de alguns poucos segundos.

Também viu a mãe enraizando. Buscando o caminho de ser mais órgãos e menos olhos. Redescobrindo o stop motion. Pegando uns bicos. Dando nó em pingo d’água.

Tomando umas rasteiras. E se recompondo.

Ele aprendeu a tirar, com minha cara, sarros tão bons quanto os que tiro dele. Aprendeu o que é ironia, finalmente. Aprendemos os dois, quase juntos, a editar vídeos. Ele aprendeu, de um jeito definitivo, a me vencer pelo cansaço.

Eu ainda estou aprendendo a deixar ruir.

E aprendi a fazer empadão. Já passei pela fase das comidas afetivas e acho que ele curtiu, apesar de ele preferir sempre a quentinha da Célia que pedimos de vez em quando. Não teve um dia em que eu não tenha falado: vai escovar os dentes, vai tomar banho e vai arrumar essa bagunça.

Ele agora, finalmente, vai de primeira. E às vezes me surpreende indo sem eu pedir. Às vezes, ele perde direitos. Às vezes, eu cedo.

Já passei pela revolta total, pelo desejo de que algum sabotador russo entrasse em ação, pela desesperança de prever aquela velha anistia dos culpados dessa lama tão grande em que estamos. Aí, no meio de tudo, eu acompanho o nascimento de milhares de personagens, que logo se transformam e viram armas, veículos, ferramentas, robôs, cavernas… E com eles um milhão de nomes e enredos. E a multiplicação de revistinhas autorais, guardadas numa pasta que estourou com o tamanho da sua criatividade.

Ainda dormimos juntos.

Neste mês, ele começou a dormir num colchãozinho ao lado do meu. Eu às vezes tenho insônia e ouço que ele às vezes range os dentes ou gargalha no sono. Quase nunca lembra dos sonhos e quase sempre tem medo de ir fazer xixi sozinho no meio da noite.

Num dia desses de tédio, entramos debaixo de uma coberta e fingimos que estávamos na barriga de um monstro roxo. Mas, como a gente estava com amnésia na ocasião, achava que ali era o mundo inteiro. Ele foi esperto e foi engolido com uma lanterna. No final, fomos vomitados para fora, porque ficamos com calor e sem ar. Ele não se lembra mais que a gente fazia isso quando ele era menor, a gente adorava ficar debaixo de panos, se olhando e falando baixinho.

Ele já não lembra de quase nada de quando era menor.

Esqueceu totalmente a maior parte da sua vida, salvo uma ou outra coisa que volta em lampejos, no meio do nada. As memórias que ele está construindo a partir de agora têm essa reclusão como pano de fundo. As coisas que ele adorava fazer vão deixando de ter sentido, uma a uma, e vão caindo nesse grande esquecimento de si, enquanto – e simultaneamente – ele se inventa como um garoto grande. Um garoto grande crescendo durante uma pandemia mundial.

Menos os livros. Nisso ele ainda é quase o mesmo.

Toda semana dançamos na sala, e dessa parte eu gosto tanto.

Recentemente, numa dessas listas de som do YouTube, caímos sem querer no rock pop dos anos 1980. Eu lavando a louça e ele montando uma das mil variações de nave inventadas por segundo, antes de vir somar forças no trabalho doméstico. Aquela parte da rotina dura, todo dia sempre igual. Chatice que tem que ser. No simples, quase despercebido, eu estava cantando as músicas das festinhas a que eu ia, mais ou menos na idade que ele tem agora. Percebi ele muito silencioso e cada vez mais chocado. Os olhos atentos: aquelas sonoridades, naquelas letras que ele nunca tinha escutado, no meio de um troço que nós dois detestamos fazer, que é lavar louça. Eu esfrego e depois ele vem e enxágua. Todo dia. Ouvindo e cantando músicas.

Nesse dia, eu lavando e cantando alto. Ele escutando. Quieto.

Coração ligado, beat acelerado. Vejo um programa que não me satisfaz, leio um jornal que é de ontem, mas pra mim tanto faz. Eu presto atenção no que eles dizem, mas eles não dizem nada, ié ié. Contra todos e contra ninguém, o vento quase sempre nunca tanto diz, estou só esperando o que vai acontecer. O teu futuro é duvidoso. A gente não sabemos escolher presidente. Polícia, para quem precisa? A gente vive junto, a gente se dá bem, não desejamos mal a quase ninguém. Procuramos independência, acreditamos na distância entre nós. Essa saudade que eu sinto de tudo que eu ainda não vi. Sonífera ilha, descansa meus olhos. Todo o dia o sol da manhã vem e nos desafia. Pro dia nascer feliz.

De repente, ele grita: Mamãe, repete aí aquela do homem primata!

Eu chorando grosso.

Às vezes é preciso lembrar como é a sensação de sair de certas furadas.


Ele é o Davi, meu filho.

Eu e o pai do Davi já não vivemos como casal, mas estamos sempre juntos. O nome do pai do Davi é Pedro. Ele é médico.

Quando começou a pandemia, nós decidimos que o Davi ficaria mais seguro se não revezasse as casas por um tempo.

Isso aconteceu há mais de um ano.