[N.43 | 2023]

Eu e João

Brisa Marques

De onde parto? De mim. Dividida em duas partes, no parto. Eu e João, tirado de mim por minha mão. Atrás de mim, minha mãe.

Talvez sejam essas as minhas primeiras referências sobre maternidade.

Maternidade um tanto fora do padrão. Deficiente? Nunca gostei dessa palavra, mas carrego em mim uma lesão medular. Isso significa muitas coisas. Partes do corpo perderam a sensibilidade, falta força muscular, há movimentos comprometidos, dores crônicas, cicatrizes, pinos, espasmos, bengalas e um filho.

João nasceu sorrindo. Como será que foi sair daqui de dentro? Seu pai não estava no parto. Nos desencontramos. Nada que o tempo não tenha resolvido. Nunca consegui ninar meu filho dançando. O dia inteiro sentada na bola de pilates com ele no colo. Um silêncio absoluto quando ele dormia, e eu dormia também. Durante os primeiros anos, também não conseguia passear sozinha com ele. Era impossível carregá-lo ou correr atrás dele. Se ele caísse, tinha que se levantar sozinho e vir até meu colo. A circunstância nos tornou caseiros.

A partir do segundo ano, eu e o pai compartilhamos oficialmente a guarda do nosso filho e isso melhorou muito as coisas. Recomecei a partir de mim; uma só parte. João aprendeu a me ouvir, me respeitar, me observar, me acompanhar. Aprendemos a conversar… Eu e ele, dois moradores de um apartamento de setenta e poucos metros quadrados.

A escola era uma de suas casas. Agora, nesse irremediável 2020, com quatro anos, João está aprendendo a viver o dia a dia sem a escola. O início do nosso isolamento foi difícil. Resolvemos ir para a casa de seus avós, meus pais, no mato, mas tivemos momentos duros por lá. Sabe o aumento do índice de violência contra as mulheres na quarentena? Essa violência também nos atingiu e voltamos para casa. Acho terrível crianças dessa idade viverem a violência tão de perto. Estamos juntos e estamos vivos!

Aos poucos, fomos nos reencontrando com nossa casa, retirando os excessos, mudando algumas coisas de lugar, inventando histórias, encontrando ritmos, olhando o céu pela janela, compartilhando angústias e alegrias. Aqui tem floresta, onça-pintada, macaco, leão, dinossauro, esconderijos inacessíveis e pontes que nos levam para todos os lugares do mundo (e até para o espaço). Ainda não sabemos quando voltaremos a encontrar todos os amigos-crianças. Enquanto isso, estamos cuidando um do outro.

Temos brincado muito. A gente pinta, joga totó, baralho, argolas, desenha, faz bolos, cosquinhas, rosquinhas, shows, teatro, almoço, cabana, suco, rega as plantas, conta histórias, escreve cartas, toma banho, se descobre, se apoia, se frustra, se desentende, se ama, eu perco a paciência, ele muda tudo de lugar, cai, machuca, sobe na mesa, em cima de mim, pula no sofá, esconde, corre, eu caio, machuco, levanto e observo. Outro dia, descemos para jogar futebol no térreo… É claro que ele sempre ganha! Imagina um menino de quatro anos driblando uma mamãe bengalante que corre dez vezes mais devagar que ele? Ele se sente o jogador mais rápido do mundo e eu digo:

– Quero ver você driblar alguém do seu tamanho!

Na hora de subir o elevador, aviso:

– Chegando em casa, tomar banho!

– E nós não podemos esquecer de tomar água. Eu e você! – diz ele.

– Ainda bem que você cuida de mim, João.

– Você sabe se cuidar sozinha… – lembra-me ele, enquanto limpa tranquilamente a minha roupa suja de grama.

E assim continuamos. Enquanto ele diz que quer ter cem anos para pegar a lua e alcançar as estrelas, eu me desequilibro nos seus sonhos de criança. Penso no quanto esse tempo tem sido importante para crescermos e exercitarmos a presença em tempo integral. Não que isso seja tranquilo. Dói! Imagine… Já chorei duas vezes com ele porque precisava de meia hora sozinha e não dava para pedir uma força para seu amigo imaginário. Na segunda vez em que chorei, já consciente de que adulto também chora, João elaborou uma ótima estratégia para me fazer rir. Rimos.

Quando ele está com o pai, cuido de mim, da casa, trabalho, descanso, faço as compras, terapia, converso com outras pessoas, sofro com a violência no mundo, a fome, o racismo, o machismo, o capacitismo, o Brasil, a economia, a ganância, a destruição do meio ambiente, o desmonte da educação, fico triste, sinto prazer e sonho. Penso no meu poema que ajudei João a decorar: “a saudade é um instantinho de presença”. Como é bom ter um filho que rima olho com piolho e me joga brilhinhos à noite para dormir!