[N.44 | 2023]

O jogo dos dias

Carla Maia

É preciso começar pela margem. Primeiro, separar as peças, isolando todas que tiverem uma lateral perfeitamente reta, são as que formam a moldura, estabelecendo o limite e o início das conexões restantes. Atenção para as peças com duas laterais retas, essas são as
de canto, é importante ter atenção aos cantos. Depois, seguir orientando-se pelas cores e pelos formatos até completar as bordas, para perceber com mais nitidez como preencher os espaços que faltam.

É recomendável organizar as peças por cor e aspecto, formar pequenos conjuntos, isolar aquele em que predomina o azul daquele que se destaca pelo amarelo. Isso facilita a busca pelas peças que pertencem às diversas áreas que compõem o quebra-cabeça. Pode ser que, no fim, uma peça amarela complemente uma outra azul, mas isso só se descobre depois, à medida que o jogo avança. A regra mais importante é ter paciência e não forçar o encaixe. A peça correta se encaixa sem esforço.

Passar o tempo em busca do encaixe justo foi uma forma de lidar com essa realidade desencontrada em que sempre parece que as peças não têm desenho, não formam nada, ou, de repente, juntas, formam um bloco de imagem inquebrantável, o absoluto sem retorno. Me peguei pensando nos dias como quem procura um método de preenchimento de espaços, de adaptação precisa. Primeira recomendação, montar a moldura. Em cada canto do dia, uma refeição. Entre uma refeição e outra, o que encaixar? Minhas multitarefas se misturam às do meu filho – fazer reuniões, alimentar os cães, limpar o chão, lavar louça, tirar o pijama, lavar roupa, fazer a cama, aulas remotas, tarefas da escola, exercício físico, hora do jogo, preparar os materiais para a aula de artes, preparar refeições, preparar aulas, preparar o banho, preparar, preparar, preparar, quando estamos prontos, afinal?

Tento organizar as peças em subgrupos. Separo os momentos de trabalho dos momentos de respiro, observo se o primeiro conjunto não desequilibra demais o segundo, apenas para constatar que, sim, na montagem da rotina diária, a área das tarefas é bem maior do que a área de lazer, como um grande firmamento azul que se impõe sobre um campo de girassóis amarelos. O mais importante é não forçar o encaixe, repito para mim mesma. Adaptar-se, ter paciência. Uma pecinha de cada vez, um dia de cada vez.

Outras brincadeiras me ensinam. Por exemplo, para jogar paciência, é preciso aprender a sequência das coisas e reconhecer que a desordem pulsa no coração da ordem. O xadrez me ensina a ter atenção ao movimento do outro e a reconhecer que grandes jogadas muitas vezes envolvem grandes sacrifícios. Renunciar ao cavalo para salvar a torre. Deve ser por isso que acho xadrez o jogo mais difícil. Não gosto de sacrifícios, sou péssima em previsões. Já jogar memória eu gosto bem: é sobre tentar, errar, tentar de novo, errar melhor, memorizar o erro para evitar que ele se repita, sabendo que é dos erros a tendência à repetição. Também é sobre esquecer. No instante em que viro uma carta, percebo que já me esqueci da que abri na jogada anterior. Qual era mesmo a posição do filhote de onça-pintada?

O mais bonito é perceber meu filho crescer com as brincadeiras, nesse exercício de entender as regras e acolher o acaso. Na memória, seus oito contra os meus quarenta anos de idade conferem larga vantagem. Envelhecer é se conformar ao esquecimento. No xadrez, também perco fácil, ele já me aplicou um xeque-mate em três jogadas. Faz sentido que ele me supere, porque é dessa energia de superação que ele foi parido, amamentado e criado. É com a superação que os nossos dias juntos vêm sendo preenchidos, desde o início da pandemia. Ainda que pareça – e seja – impossível superar completamente.

Com o quebra-cabeça, trabalhamos em equipe, vibramos por cada pequeno avanço, cada nova peça que encontra seu lugar. “Essa foi difícil!”, ele diz sorrindo e, por um instante, tudo se encaixa. E logo voltamos à busca do ajuste cabível, ao desafio de lidar com o excesso de desordem, diante da exigência da ordem. Ainda que seja impossível ordenar tudo perfeitamente. É outra curiosidade sobre os quebra-cabeças, pelo menos os nossos: sempre parece sobrar uma peça.