[N.45| 2023]

Do dentro do nosso quintal

Fabiana Carneiro da Silva

Dou um xêro na barriga e ganho um cafuné. Dengo bom que me distraiu e eu nem vi o passar do tempo, dois anos desde aquele dia em que me rasguei para recebê-la. Naqueles primeiros dias, minha menina se fazia urso em inverno. Hoje, somente uma soneca rápida ao longo do dia. Quando dou sorte, cai no meu “turno”, quando não, é no do pai. Ela risca no chão o vigor de uma vida nova. Eu tento acompanhar, mas tropeço. Ela me ensina a andar.

– Não, filha, meu nome não é “mamãe”; é Fabiana. Mas tudo bem você me chamar de “mamãe”, assim como eu te chamo de “filha”.

Outrora foi um copo de liquidificador, agora vaso que nos ajuda a semear novos tempos. Distrai, ensina, alimenta… essa coisa de terra, da Terra, que o Homem esqueceu. Mas nós não. E nos viramos como dá. Um canteirinho no quintal, um copo de liquidificador.

– Mãe, mãe, olha isso aqui na folha, que é?

– Eita, filha, é um casulo. Gente! Não é que uma lagarta deu de escolher dormir bem aqui nessa folhinha verde.

– Que, mamãe?

– Não parece, mas tem uma lagartinha aí dentro, filha.

– Que fofa. Tô com fome, mãe.

– Já, já vamos jantar. Um pouquinho de paci?

– ência!

– Isso mesmo.

Deixamos a suculenta em sua ostentosa e, por isso mesmo, agressiva paz. Vou esquentar o feijão. O segunda-a-sexta enrijece, comprime. Os prazos para aquele artigo expiram hoje, o texto está manco. Preciso marcar reunião com as orientandas, mas não dá pra
ser no mesmo aplicativo que da semana passada (chamada caindo a cada 40 minutos, ninguém merece). Recusei mais uma live. Não era para ser o tempo perfeito para a escrita de meu romance?

– Mãe, quero assistir TV.

O relato-dor de Mirtes Santana, a indiferença da patroa-sinhá, a tristeza mais profunda pela passagem tão abrupta e violenta de Miguel Otávio Santana da Silva. Revisitar essa memória agora me fere novamente. Revolta. Reviro-me. Lembro de minha mãe, babá em casas distantes, lá na grande São Paulo. Das tentativas da patroa dela em me expurgar de sua barriga. Águas da cabaça. Do trabalho pesado e sem trégua até que as 40 semanas de gestação se completassem. Essa memória ficou impressa em cada uma das células do meu tecido-pele antes mesmo que ele se formasse. Minha mãe que chora comigo pela morte de Miguel. Minha mãe que me conta que, por ter a pele-marca branca (e conseguir disfarçar o crespo dos cabelos), teve como pré-destinação o cuidar das crianças da patroa; às suas amigas, de pele-marca preta, lhes coube a cozinha.

Que quentinho o sol que sinto, sabadou! Pato, peixe, siri e sereia, todos flutuam na piscina que a mangueira enche no quintal. Eu aterrizo de novo e, enquanto Imani e o Balbino saúdam as plantinhas, tento regar essa árvore que insiste em crescer dentro de mim. Seria um Baobá? No curso de nosso terreiro, os prêmios das batalhas enfrentadas pelas ruas da floresta-bairro: mamoeiro, abacateiro, moringa e babosa. Rastro do que foram encontros com feras e seres encantados, jornadas tantas empreendidas pela dupla pai-e-filha nos últimos meses. Eu não pude comparecer a nenhuma delas, mas tenho abrigo na terra que eles nutrem. Pimenteira, espada de São Jorge, espada de Iansã, nossas armas de proteção; Tapete de Oxalá, devir de calmaria. A gente fecha a mangueira e Imani dança, que alegria de criança não se contém em gesto seco. Eu, veia-do-mangue, matuto como é possível esse prisma para o tempo… O jeito do dedão do pé, a mirada forte, o movimento ligeiro. Sankofa como fundamento e vejo a expressão do que vingou, tudo ali no mapa de minha menina, um passado que se adivinha tão longo, na ginga do que é vivo, se perde como horizonte.

É gelada a água que acorda meu Orí.

– Pronto, filha, já entrei. Agora, é sua vez, bora, eu te seguro! A gente se lava. O mar é uma saudade.

– Mamãe, sabia que tem estrelas no mar também? O mar é uma lembrança. Mergulhão! – Eita, olha aí uma estrela-do-mar.

– Onde, filha?

– Ali, depois das conchinhas. O mar nos banha e ela me ensina a ser peixe.

Jociele Pego Ramos Bolonese e seu filho-semente sem vida num pote de plástico com formol, lacrado pela fita adesiva prata. O hospital “não se responsabiliza”. Aos Tupiniquins, mais uma interdição de futuro. A nós, igualmente. Eu não sou enquanto o outro não for. Me vejo em desatino. Ouço as vozes de minhas bisavós, ambas indígenas. Seria Payayá, a paterna? Seria Xucuru-Kariri, a materna? Seria eu quem? Vi minha avó abrindo uma picada na mata e ela me encarou, me entregou um presente e me feriu. Um corte no peito
que não estanca.

Olho para o passado e tento desatar aquele laço. Sua bisavó foi pega no Laço. Jociele me diz que – ainda – não é possível. Me esforço para terminar de corrigir os trabalhos finais submetidos à disciplina que ministro e reacendo em mim o desejo pela escrita. Aquele projeto do romance… Tenho uma hora antes do início da reunião do colegiado. Tenho três horas antes de assumir os cuidados com a minha filha. Me lembro de Chiziane, “por uma nova visão do mundo”. Como palavrear em plena guerra? Como foi possível à Firmina, à Carolina, à Potiguara, à Graúna? Devemos seguir. E sigo feito água que se esgueira por entre as pedras dessa tessitura verbal, tentando alcançar ali, onde o silêncio e o mistério são reis.

A borboleta rompeu o casulo. Suas asas são pequeninas e pretas com pintinhas amarelas.

– Tá vendo, filha?

Mas está parada, imóvel, enredada nos fios de seda que ela mesma teceu em sua existência pregressa de lagarta. Será que vive?

Onde se enuncia “reinvente-se”, leia “não deixe o capitalismo parar”. “Reinvente-se” ou “Não pare porque o nosso progresso depende da exploração de vocês”. “Reinvente-se”, significante lustroso que cintila no século XXI os sentidos do XVI, quando do estupro primeiro de Pindorama. “Reinvente-se” como simulacro para o onipresente cheiro de morte. “Reinvente-se” como carta-testamento de um sistema que segue, como espectro, destroçando tudo o que dança, ri e sente. Reconhecemos a insídia desse enredo colonial, invertemos as ampulhetas e tramamos outros amanhãs. Do dentro de nossos quintais, resilientes, maternamos o revide.

– Mamãe, ela sumiu! A borboleta não está mais lá na folha.

A trama de fios de seda reluz sem o corpo delicado. A felicidade dança novamente em minha menina. Ela risca o céu com seus pulões e num abraço apertado também me empresta suas asas. Não existe o ordinário quando se inaugura a vida. Imani me ensina a ler o vazio e nele desenha aquilo que seu nome inscreve, a palavra Fé.