[N.46 | 2023]

Belo Horizonte, 30 de julho de 2021

Junia Mortimer

Escrever um texto sobre maternidade e pandemia? Sobre Gil e a falta de tempo? Sobre política, persistência, cotidiano? Não sei como desviar desse tema nem do quanto me ocupou a diferença entre homens e mulheres na distribuição dos cuidados da domesticidade.

Esgueiro-me ao redor do tema: nenhuma iluminação nem cheiro de fagulha; total ausência de disparador, nenhuma imagem. Ouço canções ácidas de Mautner que não ajudam a situar o coração obtuso diante da sobreposição entre o novelo-nó da pandemia e os descaminhos que hora ou outra irrompem a continuidade da vida. __ Relato bestialmente que a bicicleta (no que ela faz ao corpo e, sobretudo, no que ela possibilitou aos meus olhos) ajudou a desenquadrar o que a câmera tinha condicionado ao longo de alguns anos de fotografia. Pragmaticamente, pedalar ajudou a pirar menos e a reposicionar o redemoinho que pode se tornar a domesticidade em tempos de isolamento social.

A maternidade não é uma entidade, não é um campo separado. E eu não me esgoto nela. O que me escapa é tentar dizer alguma coisa em torno da singularidade absurdamente subjetiva dessa experiência. Continuo a escrever como se a escrita pudesse fazer esse
deslocamento. _ Os que me olham. Que tanto encaram?

Continuo a escrever com a caneta azul no caderno bonito no meio do mais burguês dos cafés de beagá. Imagino-me rodeada de bandeiras verde-amarelas gritando que nossa bandeira jamais será vermelha. Rodeios, volteios, o nojo do momento político do país. __

Relato ainda que, sim, o tempo escasseou, o cansaço aumentou; o medo foi menor que o desabamento dos afetos a olhos vistos; aos olhos de uma criança de dois para três anos; de três para quatro anos. Metade de uma vida vivida em condição de isolamento social. As coisas truncaram, o intestino travou: “Não é para sair, mamãe!”. E de mim vazou uma dor inédita: a flecha de um fracasso que excede o território de meu corpo e atravessa o corpo do outro, por quem sou responsável. Sim, o mais inocente de todos. A injustiça nasce na intimidade? Pedir ajuda. Não se envergonhar de pedir. E pedir quantas vezes forem necessárias. Para receber da forma que for possível. Falhar sempre. Falhar novamente. Falhar melhor. _

Os traços do tempo me separam de todas as palavras já escritas. Uma escrita-traço, escrita-rastro; escrita-lastro? Despede-se de meu esforço de pensar sobre o tema da maternidade na pandemia para se satisfazer com uma catação de algumas farpas e talvez nenhuma poesia. Vejo que há pontas cortantes entre os restos catados que rasgam qualquer desejo precipitado de construção de sentido. Tento redimensionar o sofrimento pela régua dos privilégios sociais e isso me recompõe; ao tempo que me permito receber o abraço de quem me diz que ao sofrimento não cabe comparação. Sua medida é sempre real. Faz bem, ainda assim, descentrar-me do umbigo e distribuir meus esforços no arrasamento do fora. _

Quando morei em Lisboa, eu quis ser escritora e em tempo salvei as livrarias de algum tomo a mais para dizer de menos. Já quis ser tanta coisa. Continuo querendo. Ser mãe? Eu não sabia o que era esse desejo nem sua origem, e acolho tanto minha ignorância como todo o empenho de meus pais em minha criação. [É verdade que há um perdão que só consegui acessar por meio da maternidade, ainda que sejam muitos os caminhos para essa forma do amor. Mas isso não tem a ver com a pandemia. Rodeios, volteios: trejeitos de uma herança barroca ou de um gosto por Severo Sarduy que me veio pelo amigo historiador baiano].

Por fim, vamos aos fatos – assumimos em casa alguns riscos: nosso filho voltou a frequentar a escolinha. Termômetro, gel, troca sapato, gel, 25 máscaras por semana, gel, macacões, visor de plástico, acesso restrito, boletins semanais, acompanhamento profissional, alô? coriza?!, busca a criança, suspensão da frequência por cinco dias em função de uma rinite fora de hora, cancela reunião, casa da vó, corrige os trabalhos, roça, fecha as notas do semestre, retorno, tenta avançar na escrita do artigo, termômetro, gel, troca sapato, gel, máscara, gel, boletim, gel. Nas mãos, na boca não, filho! Nada tira o risco da contaminação, fina lâmina suspensa pelo fio dos dias. Falta de consciência? Da parte de quem? A dimensão política da intimidade, da domesticidade. Democracia do cuidado. Precisamos falar sobre isso.