[N.51 | 2023]

Origem, confinamento

Nina Rizzi

Gosto muito de contar as histórias de minha avó, de como minha mãe herdou os seus cheiros de lavadeira, doceira; de que fazia a própria massa e o molho do macarrão. Gosto de furtar histórias também, como aquela de a vovó amar mulheres e só ficarmos sabendo
no dia em que Joaquim, meu primo indiscreto, contaria tudo sobre eu estar de amores com uma mulher…

Tenho um confinamento na minha origem.

Gostava muito mais de poder dizer que minha avó foi uma benzedeira, minha bisavó foi uma curandeira, minha tataravó foi laçada e as ainda mais velhas só podiam ser livres no pensamento, enquanto os corpos lhes eram subtraídos por uma gravidez atrás da outra.

Não posso dizer: não sei nada ou quase nada das minhas origens, meu nome foi a única rasura que sobrou da primeira mãe de minha mãe, morta antes que ela fosse adotada e recebesse o nome de um pai que nunca foi pai – ou que sempre foi pai, se temos nessa palavra um emaranhado de homens que: ou são ausentes, ou violentos, ou abandonam, ou tudo isso.

Minha mãe diz que minha filha é mais sua neta que os filhos do meu irmão, porque as filhas das filhas carregam mais o sangue da família, como um contragolpe aos homens que sempre esperaram um filho varão para perpetuar a raça, embora, talvez, ela não elabore
essas coisas exatamente assim.

Gostava também de ser muito neta da minha avó paterna, para ter uma origem de ali talvez, porém meu pai compõe aquele terceiro tipo, dos que abandonam; e eu só vi minha avó Catarina duas vezes. Lembro que tinha fortes traços indígenas, bebia café e fumava muito, tremia tanto quanto e tinha um olhar severo.

Minha origem com mamãe, que raras vezes chamei assim, foi na zona rural, onde vivemos durante a minha primeira infância. Ela e meu padrasto eram caseiros e lá ficávamos naturalmente confinados a treze quilômetros da cidade. Ela era uma pessoa de todas as expressões severas: olhares, gestos e vozes que reproduzia, mais tarde soube, de sua madrasta.

A primeira vez que reproduzi a severidade de minha mãe foi contra o confinamento. Ela se tornou colega da mãe de uma garota que estudava comigo, e então eu já não precisava caminhar todos os dias os treze quilômetros de casa até a escola, passava alguns dias na casa dessa família.

Eu tinha um irmão de colo que cuidava como um filho e chegava aos meus onze anos quando minha mãe alugou uma casinha mais próxima à cidade. A companhia de energia ainda não tinha feito a ligação elétrica lá e eu me recusei a ir para a casa, porque eu nunca me sentia em casa, mesmo que fosse em uma casa nova; em outra circunstância, ela teria usado sua onipotência para me lembrar que crianças não têm livre-arbítrio, mas ali, naquela casa cristã da família que me acolhia e doava mantimentos e roupas usadas, jamais o faria. E eu sabia disso. E foi também a vez que usei a infantil chantagem emocional, a primeira vez que, sim, fui manipuladora e severa; e que vi minha mãe chorar, delicadamente, por minha causa.

Segui crescendo e querendo nunca, jamais, em tempo algum reproduzir os manuais de maternidade de minha mãe, como se a maternidade viesse com um manual, como se fosse sempre uma escolha a reprodução de comportamentos, maternais ou não.

Vivemos eu e minha filha a maior parte desses anos apartadas do mundo. Viajamos, ela ainda bebê de colo, de São Paulo para Fortaleza, onde eu pudesse oferecer para ela e a mim mesma uma ancestralidade: calor. Eu tentando ser a uma só vez navio e luzeiro e ponte e mar; tentando fazer jus a esse nome-significante que escolhi: casa; sem me dar conta que casa, além de morada, é também confinamento.

Hoje vivemos esse confinamento que não é como aquele meu e da minha mãe, nem o meu e de Lavínia quando cá chegamos: geográfico e periférico, mas um confinamento coletivo e sem escolha, atroz, onde pessoas adoecem, morrem, aqui bem ao nosso lado, por todo lado. Dizer que estamos severas chega a ser um eufemismo.

Temos o direito de estar em casa, enquanto outras pessoas têm esse direito roubado. Temos o privilégio de ter wi-fi em casa e de ter um celular. Tenho o privilégio de ser coordenadora em uma escola particular onde minha filha tem bolsa de estudos integral. Mas ela não gosta nada de estudar remotamente… e todas as manhãs, quando o relógio bate às sete, todas as caveiras… não tem nem rima pra isso.

Minha filha tem treze anos e, embora odeie que a chame de adolescente, ela é. Seus hormônios estão explodindo dentro do corpo e dentro do quarto: vivemos um confinamento dentro do confinamento, entrecortado por gritos, choro, chantagem, manipulação… Talvez eu também esteja vivendo uma adolescência tardia, e viramos adolescentes juntas; a verdade é que eu não sei nada o que hacer além de inventar línguas a cada dia, tateando na escuridão formas y formas de dizer & desdizer-deshacer.

Chego na parte nevrálgica desse texto. A parte em que devo dizer como está sendo a nossa vida nesse tempo terrível; como ultrapassar um parágrafo? Como fazer essa travessia entre a ética do sensível e a ética da partilha? Invento ainda outras línguas para dizer: filha, está muito, muito difícil, me ajude! Não é verdade que a única coisa que faço por você é o almoço, mas olha, o almoço demanda muito de mim, entre tudo mais! Não, eu não te
odeio! – eu digo. Ela também. E vamos dizendo sem eufemismos atrocidades, delicadamente, às vezes.

Tenho dificuldades para dormir e Piaget fica me dizendo coisas: somos muito mais severas com crianças e adolescentes do que com pessoas adultas; quantas chances e castigos para crianças e adolescentes? E para adultos?

Poderíamos conversar sobre encarceramento…

Eu queria voltar o tempo.

Claro, infrutífero dizer isso.

Por hoje, vou entregar a chave do quarto dela que eu confisquei.

Há tanta gente com fome de pele, diz a neurociência. As pessoas confinadas sem um alguém para um abraço, para um nada qualquer. E eu, privilegiada, tenho cá ao meu ladinho a pessoa que mais amo no mundo inteiro.

Confinada no único lugar que gostaria de estar.

Dar um abraço, já faz tempo. Tentar de novo e de novo.

É tão difícil.

Gostava muito, muito mais e além de uma outra origem.

Isso sim é possível.

Minha amiga e poeta Líria Porto diz numa poema:

 sou minha própria ancestral

já me pari tantas vezes – avó mãe filha neta
sou meu elo na corrente.

Já fui muitas filhas e mães para minha mãe; muitas mães para minha filha e sei que ainda hei de ser muitas filhas para ela. Agora sou minha própria ancestral, junto com minha mãe e minha filha em nossas vidas de confinamento.