[ N.54 | 2023]

Ana de Amsterdam [fragmentos]

Ana Cássia Rebelo

21 DE SETEMBRO DE 2007

O ginásio é antigo, de madeiras escuras, tectos altos de estuque trabalhado. Há retratos dos primeiros presidentes da colectividade pendurados nas paredes. Senhores gordos, com bigodes retorcidos e cabelo puxado com brilhantina. Em Cuba, imagino, deve ainda haver muitos ginásios como este, com cheiro de óleo de cedro. Só que, em vez de praças cheias de autocarros, hão-de dar para praças com jacarandás e rosas-da-china. Ao fundo, um palco, guardado por reposteiros pesados de veludo cor de vinho, acumula o pó das memórias e dos mortos. Um grupo de meninos ensaia saltos de trampolim sobre o plinto. Outro grupo faz exercícios de tapete. Pinos. Rodas. Cambalhotas. Quatro janelas largas deixam entrar a luz serôdia do final do dia. É uma luz amarela que ameaça com trovoadas. Reparo nas argolas e nas barras paralelas, nos colchões já velhos, cansados de tantos saltos, tantas acrobacias. A minha filha calça as sapatilhas em silêncio. Não se amedronta por ser a sua primeira aula. Tem corpo de ginasta. É pequena e esguia. Depois de receber as indicações do professor, avança para o fim da fila e espera a sua vez. Espanta-me o desembaraço dos meus filhos. Donde lhes vêm a confiança e a calma para enfrentar o mundo e os outros? Duas meninas mais velhas falam com ela. Uma pega-a ao colo. A minha filha sorri. Quando chega a sua vez, faz três cambalhotas seguidas. É o único exercício que sabe fazer. Depois arrebita o rabo e levanta os braços. Tal como lhe ensinei. Parece uma Nadia Comaneci pequenina, cabriolando no ginásio cubano que fica no Poço do Bispo.

14 DE OUTUBRO DE 2007

Mal dava por mim, combalida, a dar uma tossidela mais profunda, um cof-cof-cof prolongado, corria a pedir à minha mãe que fizesse o xarope. Ela acedia. Começava por lavar muito bem uma laranja. Com um garfo ou uma faca perfurava-a em vários sítios. Depois punha o fruto dentro de um tacho pequeno. Adicionava-lhe de seguida uma cerveja preta e várias colheres de açúcar. O preparado fervia durante longos minutos até ganhar a consistência de um caramelo líquido. E, assim, em pouco tempo, estava pronto o xarope caseiro, o tal que nos aliviaria das tosses cavernosas, da expectoração que nos enchia os pulmões, os brônquios, os bronquíolos, a traqueia e todos os restantes órgãos do sistema respiratório. A minha mãe vertia o xarope para dentro de uma tacinha de vidro. Deixava-o arrefecer em cima da bancada de mármore da cozinha, entre a batedeira, a picadora, o copo misturador. Ali ficava o líquido escuro, quase preto, perdido no meio da panóplia infernal dos ajudantes de cozinha da minha mãe. Era suposto bebermos uma colher daquele líquido de quatro em quatro horas. Ou de cinco em cinco horas. Ou de seis em seis. Já não sei. Acontece que eu, vítima do vício da gula, adorava o sabor daquele xarope. Não lhe resistia. Cada vez que me apanhava sozinha na cozinha, longe dos olhares recriminadores da minha mãe e da tia Dé, à sorrelfa, engolia uma ou duas colheres do dito xarope. Era tão sequiosa daquele líquido que, muitas vezes, ignorando as regras da boa educação, alarvemente, bebia o xarope da tacinha. Quando, antes de nos deitar, a minha mãe ia à cozinha a buscar o remédio, encontrava quase sempre a tacinha vazia. Quando a via assim, esvaziada, olhava-me com aqueles olhos de menina que Deus lhe deu e, sem falar, dizia-me “É mesmo tonta a minha filha”.

Passados tantos anos, sou eu que preparo o xarope de cerveja preta e laranja para os meus filhos. Imito os gestos da minha mãe. Mal os oiço tossir, corro à despensa, à procura de uma cerveja. Depois, entretenho-me a fingir que sou uma mãe experiente, cheia de sabedoria, preparada para enfrentar, nem que seja com mezinhas e remédios caseiros, qualquer achaque dos filhos. Todavia, apesar de meu empenho, os miúdos desatam aos gritos, fogem por todas as divisões da casa, renitentes em provar aquele remédio, de cor preta, de consistência e cheiro duvidosos. Não sabem o que perdem. Por isso, por culpa deles, tal como acontecia na casa materna, acabo por ser eu a beber o remédio. Pego na tacinha, ignoro o facto de estar sã da cabeça aos pés e bebo o precioso líquido. Todo. Até ao fim. Glu, glu, glu. Já está.

20 DE MAIO DE 2008

Chega-se um homem ao pé de mim e diz assim: “A menina tem um cigarro?”. Reparo-lhe nos olhos encovados de espectro, na pele tisnada do sol, na barba emaranhada, na boca sem dentes. Empurra um carrinho de supermercado. Deve viver na rua. Espanta-me que saiba falar. Quem vive na rua acaba, mais cedo ou mais tarde, por perder o dom da fala. A solidão seca-lhes a voz. Desaprendem a linguagem dos homens. Aprendem a dos bichos. Grunhem como animais. A voz deste homem, porém, é limpa. Sabe falar. E está a falar comigo. Não lhe respondo. Continuo a andar. O homem continua a caminhar atrás de mim. O carrinho que empurra, cheio de sacos velhos, chia. Em cima dos sacos, há um urso de peluche imundo, já sem olhos. Da boca sai-lhe uma linguazinha de feltro cor-de-rosa. O homem repete a mesma frase. “A menina tem um cigarro?”. Há gentileza na sua voz. Trago escondido, no bolso interior da mala, um maço de cigarros que fumo às escondidas dos meus filhos. Durante a noite, quando adormecem, cansados de tanto jogarem às escondidas, sento-me junto ao estendal da varanda e fumo um cigarro. É o melhor momento do meu dia. Podia dar um cigarro ao homem do carrinho. Livrava-me dele, da sua sujidade, da sua imundície, da sua voz límpida. Mas uma mulher grávida não fuma. Não posso dar-lhe um cigarro. Continuo a andar. Sinto-me uma tartaruga vagarosa, daquelas que têm mais de cem anos e chegam às praias de águas tépidas para se livrarem de centenas de ovinhos. Detesto estar grávida. Sempre detestei. Perco o controlo do meu corpo. Passo a ser um mero invólucro. Uma cabaça. Um casulo. O homem do carrinho continua ao meu lado. Chia o carrinho de supermercado como se fosse um lamento. Volta a pedir-me um cigarro. “Não fumo”, acabo por lhe dizer. Ele olha para mim e escarafuncha o nariz com as unhas sujas. “A menina fuma”, diz com lentidão. Depois vai-se embora.

19 DE JANEIRO DE 2009

O mais velho desliza pelos corredores do supermercado com as mãos enfiadas nos bolsos e as calças descaídas. A do meio saltita como se fosse uma libelinha, uma borboleta, um bichinho delicado e frágil. O mais novo entretém-se a chupar os dedos, enterrado no carrinho que parece um trono. As pessoas que se cruzam connosco lançam sorrisos cheios de enlevo, como se, dessa forma, quisessem partilhar a nossa felicidade. A imagem de uma mãe com os seus filhos é sempre agradável, conforta do vazio da vida, ameniza as quezílias do dia a dia. Há quem se meta com o bebé que, encantador, retribui com um sorriso baboso. Rejubilo com as minhas crias que me dão corpo e me tornam especial no corredor dos enlatados, na fila da peixaria, no açougue asséptico onde escolho embalagens de peru, galinha, coelho e um pedaço de chispe para fazer cachupa. Na caixa registadora, depois das pastilhas, chocolates e sacos de gomas, enquanto limpo o nariz da minha filha, topo com um escaparate cheio de revistas femininas. Uma das revistas prende a minha atenção. Na capa, ao lado da imagem de uma miúda desgrenhada, magra e feia, anuncia-se a oferta do kamasutra do sexo oral. O assunto interessa-me. Fosse eu uma mulher da má vida e seria conhecida, nos bordéis e lupanares desta cidade, pela exímia competência da minha boca. Faço deslizar a revista para o carrinho das compras e sorrio à menina da caixa, uma mulata bexigosa, que elogia os olhos dos meus filhos.

5 DE MAIO DE 2010

Lavei os dentes até me sangrarem as gengivas, fiz o Seretaide, inalei uma poeira branca que atravessou a traqueia e se espalhou pela minha floresta brônquica, apliquei no rosto um creme novo, opalino, quase amarelo, de consistência leitosa, que me suscitou dúvidas e incertezas. Sempre ouvi dizer, talvez sem fundamento, que o esperma tem qualidades milagrosas na área da cosmética feminina. Como a baba do caracol. Espalhei o creme e, por momentos, deixei-me ficar a olhar para o espelho. Dei conta das minhas imperfeições: os pelos do buço, as sobrancelhas hirsutas, os poros dilatados na testa e no nariz, a pele cansada do sol, envelhecida, o canino inferior do lado direito torto e pontilhado de manchas de tártaro, as narinas dilatadas. Depois de uma hesitação muito pequena, uma coisa de liada, foram dois ou três segundos, abri a caixa dos comprimidos que está na gaveta do armário. Levei um Xanax à boca. Senti-me vencida pela vida. Não tarda nada, sei-o, volto a fumar, a beber, a encharcar-me de comprimidos. Volto a aborrecer-me com o recato da vida doméstica, a nausear-me com a sobriedade dos dias iguais. Não tarda nada, é um instantinho, volto a não tolerar viver apenas para o cumprimento das tarefas maternais. Amo os meus filhos. Com fúria, certo desespero. Quero-lhes bem. Mas não me basta o que têm para me oferecer. Deitei-me com a certeza de que é a concupiscência que dá cabo de mim. Não fora o desejo e a insatisfação, e seria uma mulher moderadamente feliz.

Li durante duas horas. Adormeci no preciso instante em que um carro atravessou a rotunda e o clarão dos faróis entrou pelas frinchas dos estores. Dormi como não dormia há muito tempo. Não acordei uma única vez. Não ouvi o assobio longínquo que vem do sistema de ventilação da casa de banho e que, não sei porquê, me lembra desfiladeiros e desertos de terra vermelha. Não escutei o Joaquim, no quarto ao lado, pedindo o biberão, soluçando a sua solidão até voltar a adormecer, cansado e suado. Não me levantei para percorrer, na penumbra, os corredores do apartamento até à cozinha. Tropeçar num triciclo, apalpar paredes, ligar o interruptor, uma luz de velório cobre a noite, sentir o frio dos mosaicos, abrir a porta do frigorífico, levar à boca dois morangos, um quadrado de chocolate, duas fatias de presunto, um cornichon. Dormi como não dormia há muito tempo. E voltei a sonhar. Sonhei com um camionista de rosto flácido. Chamava-se Fortunato e tinha um camião encarnado.

4 DE SETEMBRO DE 2010

Nunca poupei os meus filhos ao meu sofrimento. Partilho com eles, para horror de muitos, a solidão e a angústia.

29 DE ABRIL DE 2011

O João levou-me a jantar a uma rulote perto do campo de futebol do Sacavenense. Fiquei no carro durante algum tempo porque, no banco de trás, dormia o mais pequeno, empanzinado de canja de galinha e feijoada que sobrara do almoço. Durante algum tempo, zelei pelo sono do mais novo e observei o João, tratando do nosso jantar, pedindo duas pitas shoarmas, uma cerveja para mim, um Sumol de laranja para ele, orgulhoso de me proporcionar uma experiência ao estilo do Anthony Bourdain, homem que sabe ser do meu agrado. Ali estava o meu filho recém-adolescente, moreno, tisnado do sol, olhos redondos, as mãos enfiadas nos bolsos, ao balcão da rulote. Dois homens bebiam imperiais. Outros comentavam o jogo do Benfica. Os brasileiros tiravam tirinhas do naco de carne que rodava lentamente no espeto. Apreciavam, com extraordinárias vozes de falsete, as formas físicas da futura rainha de Inglaterra. O meu filho, percebi-o bem, estava feliz por estar ali. De vez em quando, enquanto aguardava pelo pedido, olhava-me de soslaio e, sorrindo, parecia dizer-me assim: isto é o que sou, mãe, digo Telémaco, Penélope, Ulisses, leio os livros que escolhes para mim, mas não me obrigues a ir a concertos, a exposições de pintura, poupa-me ao martírio do cinema europeu, não me amachuques mais a virilidade, não me lixes a adolescência com a tua sensibilidade feminina.

10 DE SETEMBRO DE 2011

O Joaquim anda por ali a matar todos os seus inimigos com a espada de laser que recebeu no aniversário. A minha filha, aproveitando a distracção do irmão, que sempre reclama o trono, senta-se ao meu colo. Linda menina, meu amor tão grande. Conto-lhe, a seu pedido, os pormenores de cada um dos meus partos. A dor que veio, tomou conta de mim, uma dor tão grande, parecia que rebentava, uma dor que, de tão intensa e absurda, logo esqueci. Explico o que senti quando os vi pela primeira vez. A estranheza de não sentir amor quando nasceu o João. Estava à espera de sentir, ao primeiro olhar, um amor absoluto, era o que as outras mães contavam. Eu, em frente da incubadora, olhando aquela criança estranha, feia e frágil, desejei apenas não estar ali, quis ir-me embora e nunca mais voltar. O amor veio mais tarde, muito mais tarde, pelos seis meses, pelos nove, não sei, no tempo exacto, até lá era só instinto de protecção igual ao de qualquer outra fêmea.

Explico que, em relação a ela, não senti estranheza perante a ausência desse amor. Já sabia que custava a chegar. Senti, isso sim, deslumbre. “Eras tão bonita e perfeita, nasceste de olhos abertos, pronta para o mundo, exactamente como te imaginei e desejei.” Já o Joaquim, esse que para aí anda de espada de laser em punho, foi diferente, o desespero fez-me amá-lo, mal o vi, precisei de o amar, urgentemente, achei que só o meu amor o podia salvar. A conversa continua. Busco pormenores: a luz na enfermaria de recobro, as enfermeiras do serviço de neonatologia, de batas coloridas e sapatos confortáveis, o livro que levei para ler e não li, as flores que a Mila me ofereceu, eram ervilhas-de-cheiro, ou bocas-de-lobo, flores de cacho, perfumadas, tão difíceis de encontrar nas floristas em Lisboa.

7 DE JULHO DE 2013

Corpo atravessado na cama. Nu, suado, salgado, morto. O quarto muito escuro. Fecho os olhos. Penso em pulsos cortados, nos meus pés à beirinha da linha do comboio, nas caixas de comprimidos guardadas no armário da casa de banho. Não consigo evitar a tristeza, os pensamentos sombrios, a angústia patética. A tentação é sempre grande. Tenho vontade de retalhar com golpes fundos, muito dolorosos, o meu corpo. Matá-lo. Não o suporto na sua inapetência. Devia ceder de vez à loucura. Deixar de brincar ao faz-de-conta. Talvez conseguisse descansar. Dormir uma noite seguida. Chega o Joaquim, só de cuecas, óculos escuros na cabeça. Deita-te em cima de mim, peço-lhe. Ele trepa e deixa-se estar muito quieto como se compreendesse a essencialidade do gesto. Estás triste, pergunta. Estou, estou muito triste, respondo. Ficamos assim, corpos sobrepostos, durante algum tempo, a ver se a minha tristeza passa. Costuma passar.

10 DE JULHO DE 2013

Hoje, à hora do almoço, deitei-me com um homem e lambi-o. Não gostei do homem nem do sabor do seu suor, asséptico, com um ligeiro travo a bolor e medicamento. Na casa de banho, enquanto me arranjava, bochechei a boca com água e cuspi. Como se estivesse no dentista. Ao olhar-me no espelho, lembrei-me da rosa-do-deserto que a Cilinha, minha madrinha, costumava guardar na cómoda do seu quarto. Feita de areia e sal, de uma cor muito bonita, misteriosa, foi objecto que durante anos exerceu sobre mim um fascínio muito grande. Sempre que visitava os meus padrinhos no apartamento de Benfica, corria ao quarto deles, procurava a rosa-do-deserto e ficava a olhá-la. Depois encostava a flor de pedra à boca para sentir nos lábios o sabor do deserto. Hoje, ao olhar-me ao espelho, depois de lamber a pele de outro homem, percebi finalmente ao que sabe o corpo do João: ao sal do deserto.

21 DE JULHO DE 2013

No escuro da sala, peguei-lhe na mão e sussurrei-lhe ao ouvido “amo-te”. Depois, estivemos sentadas num banco, em silêncio, a olhar o Joaquim correr no parque, irrequieto como um cabritinho, os pés de dedos gordos enfiados nas sandálias baratas. Gostava que ele nunca crescesse, que ficasse assim para sempre, pequenino, a depender de mim, a fazer-me companhia, a ser a minha muleta, acabei por lhe confessar. “Ele vai crescer, mas podes sempre ter outro filho”, respondeu, segura, serena, certa das palavras que usa. “E com quem?”, perguntei-lhe, atrapalhada com aquela conversa. Ela respondeu. Pergunto-me muitas vezes como é possível que esta criança seja minha filha. Às vezes, aliás muitas vezes, parece que é ela a mãe e eu a filha.

9 DE SETEMBRO DE 2014

Estou completamente bêbeda. Queria reflectir sobre o meu dia e não sou capaz. Há dezasseis anos fui mãe pela primeira vez. A maternidade não me realiza, nem me tranquiliza. Quero-me úmida, mulher. E gritar quando o orgasmo finalmente chegar.

11 DE SETEMBRO DE 2014

Desliguei-lhe o telefone (dormia à uma da tarde enquanto os mais novos esperavam pelo almoço) e murmurei entredentes: “É igualzinho ao pai. Não se pode contar com ele para nada”. Pus creme nas mãos e, durante algum tempo, enquanto as amaciava, olhei a fotografia que está em cima da minha secretária — foi tirada pouco antes de ele partir o dente da frente na piscina; sorri, abraçado à irmã, que veste a canadiana vermelha e usa os brincos das libelinhas. Saí para a consulta de psiquiatria e, no caminho, já mais calma, apercebi-me de que não tinha, não tenho, qualquer autoridade para censurar o meu filho mais velho. Como posso recriminar o João? Durante as férias, sábados e domingos, durmo sempre até tarde. Deixo muitas vezes a Madalena a tomar conta do Joaquim que, sensata, responsável, lhe dá o pequeno-almoço e o obriga a lavar os dentes. Eu fico na cama, meio acordada, meio adormecida, num mundo paralelo, insólito, ao mesmo tempo próximo e distante. “É dos comprimidos que tomo para dormir”, justifico-me aos miúdos para não parecer mal, intimamente sabendo que os comprimidos já não fazem qualquer efeito, servem apenas para esconder a minha vontade de adiar um pouco o momento em que terei de voltar a ser mãe e cuidar deles. Fico a preguiçar na cama. Às vezes, imagino-me com os homens com quem me deitei, às vezes, toco-me, às vezes, venho-me. Já a chegar ao consultório, pouco antes do Areeiro, senti-me a pior mãe do mundo. Má por, languescente, passar as manhãs na cama. Má por ter desligado o telefone ao João. Telefonei-lhe a pedir desculpa. “Desculpa, filho”, disse-lhe, e a voz dele logo se animou.