[N.62 | 2023]

Um tronco para chamar de meu

Luiza Bussius

Sempre gostei das idas à fazenda. Tinha um ar de aventura e liberdade. Íamos umas 12 crianças na caçamba da caminhonete. Lembro de ansiar esses momentos. As férias. Todos os anos, viajávamos para a cidade materna de minha mãe. Onde moro atualmente, que ironia. O vento no rosto, um tanto de terra que entrava pelas narinas e, às vezes, uns mosquitinhos na garganta de quando voltávamos pela estrada de chão. O dia caindo, a noite tomando conta.

Nasci na cidade grande. Apesar de me impressionar com elevadores, pois sempre morei em casa, tenho em mim um certo nomadismo, talvez fruto das minhas origens migrantes. Teve muito movimento entre continentes, estados. Minhas andanças e moradias já não cabem mais em uma mão.

Na foto, eu estou assim um tanto séria. Olhando para o horizonte, uns fios de cabelo pela face. O rabo de cavalo prendendo as madeixas lisas, umas argolinhas de ouro enfeitando minhas orelhas. Uma regata branca, mostrando os braços apoiados nos joelhos com as mãos entrelaçadas, repousando. Devo ter uma fitinha do Bonfim vermelha em um dos pulsos, já gasta pelo tempo, símbolo de uma Bahia turística, laço de uma herança que me atravessa. Sou filha de baiana com paulistano. Um paulistano meio alemão. Sempre moramos em São Paulo. Sempre quis morar na Bahia. Tinha algo de selvagem aqui que me chamava. Será que era isso? Uma rotina mais livre e cheia de natureza? As memórias lúdicas ficaram. Será que elas foram direcionadoras das minhas escolhas no futuro? A geografia, a terra, hoje o cacau, a pecuária, a botânica?

As calças de uma estampa xadrez miúda preta e branca estão sujas na parte de dentro das panturrilhas. Devem ser do suor do cavalo. Foi um dia de montaria. A fazenda tinha esse sabor de galope de cavalo. Sair pelas mangas, às vezes acompanhar um vaqueiro a tocar um gado. Ir por aí. Apostar corridas, sentar nas longarinas do curral e ver o movimento das vacas. Um misto de medo e encantamento por aqueles seres tão grandes, alvas, chifres imponentes. Ariscas. Domadas. Confinadas ali. Submissas aos homens. Vacas profanas. Vacas que nutrem tanto as bocas famintas dos humanos.

Esse jeito de apoiar os pés, deixando-os um pouco suspensos, marcando o colo. Faço até hoje, nem percebo. Agora mesmo, aqui sentada, tenho eles assim abaixo da escrivaninha. Quanto mudei de lá para cá? Meu corpo mais gasto. Já pari um filho, já pari um pequeno saco embrionário vazio. Carrego mais uma vez em meu ventre um garoto. Ele se move aqui dentro. Ele moveu muitas águas. Talvez dê um nome a ele ligado às águas. Ele foi uma onda. Um caldo daqueles que enchem os cabelos de areia e nos faz lembrar como somos pequenos na imensidão do mar. Como somos estúpidos em domar a natureza. Ela nos afoga no menor dos detalhes. A verdade é que também somos ela, mas indignados com nossa condição de seres mortais.

Esse banco em que estou sentada está lá, igual. Acho que menos gasto que meu corpo. Uma boa madeira, as madeiras de lei podem durar séculos. Resistem aos cupins, à umidade, à ganância dos homens. Fizeram um banco com essa forma curiosa. Meu avô tinha disso. Criava móveis com pedaços de troncos e madeiras, assim sem muito acabamento, deixando óbvio que aquela materialidade que nos é tão útil já foi um ser vivo. Uma árvore gigantesca e bela, ancestral.

Ao lado do banco, parece ter um pilão de pedra. Mas não tenho certeza. A sede da fazenda até hoje tem esses objetos. Foram coletados, doados, comprados, presenteados. Ferro, pedra, madeira. Esculpidos. Talhados. São objetos de adorno e outros históricos, que não têm mais serventia. Podiam ir para um museu, como queria minha mãe. Fazer um museu com as coisas de meu avô.

Será que estava com esse semblante sério por alguma chateação? Será pelos conflitos de andar com um bocado de garotos e eu não ser um deles? Nessa foto, os seios ainda não estavam salientes, as regras não eram uma realidade. Mas uma vagina, ainda virgem, pouco desbravada, marcava minha condição.

Eu me lembro de um dia em que fui sentada num botijão de gás na caçamba e num dos inúmeros buracos da estrada a borda do botijão acertou a minha vagina. Foi uma dor lancinante, mas eu não ousei falar com ninguém. Só havia meninos e um dos meus tios dirigia o carro. Segurei a dor. Engoli. As mulheres engolem muita dor. À noite, quando fui fazer xixi, senti que doía. No dia seguinte, passou. Essa abertura para o mundo entre nossas pernas faz tanta diferença. Ainda nem escapava sangue por aí, mas eu já sabia que não era igual a eles. Ou era? Achava que podia ser. Uns poucos anos depois dessa foto, vieram as dores. E depois o sangue escuro. Uma borra de café na calcinha. Foi uma tristeza tamanha. Estava concretizado. Eu não era um deles. Foi o ponto de bifurcar? Talvez. Os interesses foram mudando. A consciência de um corpo mulher foi chegando. Não havia o que fazer, a repetição do sangue nos meses, nos anos, depois na sua ausência, ao engravidar. Essa condição de ser como as vacas. Que reproduzem, dão à luz. Somos tão visadas por isso. Nos perdemos nisso. Controlaram tanto os corpos mulheres por isso.

Hoje, já há outras configurações. O que é ser mulher? E as mulheres trans? E as que não querem ser mulheres? E as que não podem engravidar? Avançamos na compreensão não binária, mas ela segue, tantas vezes, orientando o mundo. Somos divididos, divididas.

É certo que não somos completos, ainda bem. É certo também que somos diversos, muito para além dos binarismos.

Eu volto para essa foto sempre que vou à fazenda. O banco é desconfortável, mas ele tem essa memória de infância. Meu filho adora brincar nele. Deve ser por essa forma côncava, não comum.

Eu moro aqui há dois anos e meio e já não me perco nas minhas memórias de infância como quando cheguei. Talvez idealizasse um retorno ao gozo infantil, impossível de alcançar, posto que já passou. Eu também idealizava os homens daqui e nem sabia. Eles foram ruindo quando a bifurcação-vagina se fez presente. Anos corridos e cada vez um deles, homens, caíram. Primeiro, os primos, depois, os tios, depois, meu irmão e até mesmo meu pai, que não tem nada a ver com essa narrativa daqui, rural, macho, forte, raiz. Meu pai também caiu, mas ele pode ser tão feminino que me/se salvou dessa queda.

As quedas machucam. Podem quebrar um braço, fazer uns galos, escorrer um punhado de lágrimas. Mas as piores quedas da minha vida foram as quedas de ideais. Doeram, porque eu demorei para entender que tinha caído. Que eles tinham caído.

A língua-pai cai, pode muito bem cair. Entender isso tem sido tão bom. Conceber que o meu feminino entre os homens pode ser tão forte quanto eles. Sem eu precisar me maltratar com isso, sem deixar de honrar minha beleza de mulher, minha vagina, minha forma de me inventar. Legitimo o maternar, o gerar, e estou atenta para não fazer disso esforço em vão e não pago para o sistema. Se faz cada vez mais claro que não sou eles, nem quero ser. Habito esse corpo e, nessa potência, estou gerando um outro homem, que vai me ocupando, até sair e ocupar mais deste mundo, um homem-mulher-homem-mulher, corpo.