[N.71| 2023]

Departamento de especulação [fragmento]

Jenny Offill

7.

Os olhos da bebê eram escuros, quase pretos, e, quando eu a amamentava de madrugada, ela olhava para mim de um jeito surpreso, náufrago, como se meu corpo fosse a ilha para onde ela tivesse sido arrastada.

Os maniqueístas acreditavam que o mundo estava repleto de luz aprisionada, fragmentos de um Deus que havia destruído a si mesmo porque não queria mais existir. Essa luz estava confinada dentro dos homens, animais e plantas, e a missão dos maniqueístas era tentar libertá-la. Então eles se abstinham do sexo, pois consideravam os bebês como novas prisões onde a luz seria encarcerada.

Eu me lembro da primeira vez que disse a palavra para um desconhecido. “É pra minha filha”, disse. Meu coração batia tão rápido como se eu pudesse ser presa.

Nos primeiros dias, só me aventurava a sair de casa com ela quando estávamos desesperadas por fraldas ou comida e, nesses casos, eu ia apenas até a farmácia, que ficava a um quarteirão do meu apartamento. Era exatamente a distância que eu podia andar no vento congelante carregando a bebê nos braços. Também a maior distância que eu conseguia correr se ela começasse a gritar de novo e eu precisasse voltar para casa. Esses cálculos eram importantes porque, naquela época, ela gritava bastante. O suficiente para que nossos vizinhos desviassem os olhos quando nos viam, o suficiente para eu sentir como se um alarme de carro tocasse sem parar na minha cabeça.

Depois que você saía para trabalhar, eu ficava olhando para a porta como se ela pudesse se abrir de novo.

Meu amor por ela parecia condenado, irremediavelmente não correspondido. Devem existir músicas sobre isso, pensei, mas, se existiam, eu não conhecia.

Ela ainda era pequena o suficiente para adormecer no seu peito. Às vezes, eu te dava o jantar na boca para que você não a acordasse quando levantasse os braços.

A coisa de que a bebê mais gostava era velocidade. Se eu a levava para a rua, precisava andar depressa, ou até mesmo dar uma corridinha. Se desacelerasse ou parasse, ela começava a choramingar de novo. Era pleno inverno, e alguns dias eu andava ou trotava por horas, cantando baixinho.

O que você fez hoje, você dizia ao chegar do trabalho, e eu dou o meu melhor para criar uma história com o nada que eu tinha.

Uma vez, li um estudo sobre privação de sono. Os pesquisadores fizeram ilhas de areia do tamanho de gatos em um nicho, e depois puseram gatos muito cansados em cada uma delas. No início, eles se enrodilharam na areia e dormiram, mas por fim se esparramaram e acordaram na água. Não me lembro o que exatamente eles estavam tentando provar. Tudo o que concluí foi que os gatos enlouqueceram.

Os dias com a bebê pareciam longos, mas não tinha nada de extenso neles. Cuidar dela exigia a repetição de uma série de tarefas que tinham a peculiar característica de parecer tão urgentes quanto tediosas. Elas cortavam o dia em pequenos pedaços.

E aquela frase: “Dormir como um bebê.” Uma mulher loira a pronunciou com entusiasmo outro dia no metrô. Eu queria deitar ao lado dela e gritar em sua orelha por cinco horas seguidas.

Mas o cheiro do cabelo dela. O jeito que sua mãozinha me apertava os dedos. Era como um remédio. Pela primeira vez, eu não tinha que pensar. O animal havia dominado.

Comprei um CD na internet que prometia fazer dormir até o bebê mais coliquento de todos. Soava como as batidas de um coração gigante. Como se você tivesse sido obrigado a viver dentro de um coração desses sem a possibilidade de fuga.

Nosso amigo R veio nos ver certa noite em que o CD estava tocando. “Nossa. Isso é música techno ruim”, disse. Ele se sentou no sofá e bebeu cerveja enquanto eu dava voltas com a bebê. O trabalho de R envolvia viajar ao redor do mundo para falar sobre o futuro e sobre como esse futuro parecia estar chegando rápido demais. Eu ia e voltava no corredor enquanto o escutava contar a você sobre o fim de tudo. A invenção do navio é também a invenção do naufrágio, ele estava dizendo. Vinte passos à frente, e então vinte passos atrás. Tum, tum, tum, tum, fazia a música. Mas a canção das batidas do coração só deixava a bebê furiosa. Ela gritava sem parar. “Que intenso”, R disse depois de uma ou duas horas. R, que não é mais nosso amigo, deixou de sê-lo na noite em questão.