[N.81 | 2023]

Pero las madres sabemos que no – Um coro de leitoras

Regiane Ishii

Queria escrever um email para meu filho de três anos. Não como correspondência para o futuro ou exercício de elaboração do turbilhão de emoções que ele me desperta. Meu desejo vem da aposta nas palavras escritas e lidas. Um êxtase em vislumbrar alguma legitimação, um ponto de encontro em nossos caos, mesmo sabendo que nunca haverá compreensão completa. Um conjunto de palavras podem, ao mesmo tempo, ser ponte, neblina, abismo, correnteza, e é por essa simultaneidade que, cada vez mais, tenho tomado gosto.

Não escrevi o email e, na semana passada, ele completou quatro anos. Um papel dobrado forma o V. Uma massinha vira L, um pedaço de fita crepe é o I. “Qual o nome dessa letra?”, ele pergunta, deitado, com uma perna dobrada sobre a outra. Ele sabe que está bem pertinho do A, falta apenas um tracinho. A parte que falta [livro de Shel Silverstein]. Quando me perguntam como ele está, apenas consigo responder: “intenso”. Assim, não minto, nem revelo. Sua voracidade pela vida me seduz e me assombra. Em seu vocabulário, existe o grande e o imenso.

Há alguns meses, enviei um email para minha mãe. Todo em caixa baixa. Espaçamento entre os parágrafos. Cada parágrafo com apenas uma ou duas frases. O assunto era “carta”. Um email longo, em que busquei manter as opacidades. Achava que, com detalhes, daria margem para palpites, sugestões, conselhos. Com a ambiguidade que me tem sido cada vez mais valiosa, queria manter a aura de amor, ao mesmo tempo em que dizia: daqui, não quero que você ultrapasse. Ela respondeu em algumas horas. Me senti acolhida, poderia contar com ela.

Respeitei minha inabilidade em falar por telefone ou pessoalmente. Sei que ela queria saber mais, mas não me cobrou. Não falamos sobre a forma do texto nem problematizamos o meio de comunicação. A metalinguagem foi sublimada, justo o que tanto me interessa enquanto pesquisa acadêmica. Foi uma dança de proximidade e distância que tem a ver com a necessidade de um espaço seguro para eu mesma ser mãe, e não filha. Ocupando uma posição diferente, encostei em um novo intervalo entre nós. Reconhecendo nossa distância, estamos de algum modo mais próximas.

Em La grieta, de Catalina Infante, a protagonista, pouco tempo após dar à luz, olha a fotografia de sua própria mãe:

La miro cuando quiero recordar cómo era tener una madre, que exista alguien en el mundo que te albergue por completo, pero al mirarla recuerdo que esa incondicionalidad no es cierta, jamás existió. Así lo creemos cuando niñas, que esa completitud debe ser absoluta. Pero las madres sabemos que no y habitamos esa distancia en silencio.

Agora também sou do grupo que habita em silêncio. Ainda assim, com mais de 35 anos e ciente de que não há completude possível, testei a incondicionalidade.


Ganhei La grieta de um amigo chileno de passagem por São Paulo, na segunda-feira do último carnaval, quando fomos às ruas celebrar. Completava exatamente um mês de casa nova e, portanto, de guarda compartilhada. Era também o primeiro dia após isolamento por conta de covid. Lembro das cores do bloco, da libido alta, da companhia no momento de tirar o livro do plástico ao chegar em casa. Hoje deixarei La grieta com Bel e acabo de ler, grifar e perder o fôlego com Vidas rebeldes, belos experimentos, de Saidiya Hartman. De minha mesa de trabalho, envio mensagens a duas amigas, compartilhando a avidez pelo mundo que essa leitura intensificou.

Comprei Maternidade, de Sheila Heti, ainda no puerpério, após um almoço em família num restaurante. Não lembro o nome do estabelecimento ou o prato que comi, mas me recordo da demanda visceral por ler outra mulher. Sabia que, antes de voltar para casa, tinha que passar na livraria. Era forte demais tudo o que estava vivendo. Precisava conhecer mais escritoras que tivessem se debruçado sobre as experiências de ser mãe, que tomaram a decisão de não ser mãe, que foram às profundezas da investigação sobre ser filha, que revisitaram suas próprias mães (Aline Motta, Alison Bechdel, Carmen Maria Machado, Chantal Akerman, Kim Gordon, Lina Meruane, Maya Angelou…). Depois, emprestei Maternidade a uma amiga, que fotografava os trechos que mais a instigavam e me enviava de volta.

A luz de meu puerpério (assim como a que encontro durante a escrita deste texto) foi a do outono. O frio com sol de minha estação favorita, em que, desde a adolescência, caminho por São Paulo me sentindo inspirada. Maternidade e outros livros nessa toada foram lidos apoiados na almofada de amamentação. Cabeça do filhote em cima do braço direito, boca no mamilo, extensão de seu corpo bem encostada em minha barriga e ali, perto de seus pés, o livro, cujas páginas eram trocadas com a mão esquerda. Em uma tarde, na posição contrária, com sua cabeça apoiada em meu braço esquerdo, senti meu coração acelerando na busca por bater no mesmo ritmo que o dele.

Às vezes, o livro caía no chão sem o marcador de páginas. Sempre gostei de grifar os livros com lápis coloridos para marcar minhas passagens favoritas, mas nessa coreografia de leitura, o máximo que conseguia era dobrar a ponta do papel. Ler ao mesmo tempo em que se amamenta, quando noite e dia se confundem com os despertares da madrugada, é um tipo de transe, um estado de vulnerabilidade emocional e ardor intelectual. A privação de sono até intensifica a atenção.

Naquele mesmo período, li Mãe ou Eu também não gozei, de Leticia Bassit. Lembro que era noite e contei com a luz do abajur. Não conseguia parar de lê-lo. Estava deitada ao lado da cria, que dormia, por volta das 21h. Cada movimento tinha que ser muito bem cuidado para não despertá-lo. Era preciso manter meu corpo bem encostado ao dele e assim estender mais suas horas seguidas de sono. Muitas vezes fiz isso para eu mesma conseguir descansar, mas naquele dia, tudo que eu desejava era terminar de ler o livro.

Em 10 de julho de 2021, escrevi sobre Argonautas, de Maggie Nelson, “não dá nem para fotografar os trechos sublinhados porque é muito íntimo, muito das entranhas. Talvez daqui a vários anos eu releia e possa encostar em algo que sinto agora, mas que hoje ainda é misterioso para mim”. Estávamos completando 2 anos e 3 meses de amamentação. Lembro das narrativas dos livros, mas lembro ainda mais das histórias das leituras, de quem me recomendou, de como os livros chegaram a mim e depois seguiram suas vidas.

Abril de 2023. Mais duas casas depois do puerpério, neste novo lar, li O acontecimento, de Annie Ernaux. A autora lançou o livro em 2000, a partir de uma experiência vivida em 1963. Foi a avó paterna de meu filho que me emprestou. Há algumas semanas, ela me mandou uma mensagem sucinta, dizendo: “acho que você vai gostar”. O livro chegou na mochila lilás com elefantinhos coloridos, em uma das passagens da guarda compartilhada, junto com todos os itens que devem ser levados para a escola. Enquanto lia, fui tomada pela certeza: sei que nasci mãe em um mundo em que já existiam os livros de Annie Ernaux. Ainda que não a conhecesse em 2019, esses últimos anos foram vividos permeados pela força de sua escrita. Celebro a passagem do tempo, sigo no coro, honro o que elas escrevem.