[N.82 | 2023]

Lili – novela de um luto [fragmento]

Noemi Jaffe

Ela adorava minhas mãos, os dedos finos e uma coisa que eu não entendia e que ela admirava: como as falanges superiores dos meus dedos se dobravam. Ela detestava que seus dedos fossem duros e inflexíveis. Engraçado reparar nisso.

Faz alguns anos que parei de roer as unhas – horror dela, mas principalmente do meu pai –, e ela gostava de esticar minha mão e vê-la feita com as unhas pintadas. Mas não gostava que eu pintasse de cores muito escuras. Tinha uma em especial que ela apreciava muito, um rosa meio lilás que ela dizia: “Não grita nem fica quieto.”
Um resumo do que ela era: uma defensora do meio-termo.

Lembro que uma vez em Budapeste, na Hungria, vimos um ônibus estacionado e um grupo de velhos na rua, rindo, brincando, dançando. Certamente, uma excursão da terceira idade. Ela achou ridículo: “Velhos dançando na rua…”. “Não é mais idade para isso.” Não grita nem fica quieto.

Aliás, uma das primeiras coisas que eu disse para a Leda, quando minha mãe morreu, foi que a gente precisava viver uma vida cheia de desejo e paixão, para não envelhecer e depois morrer como ela, triste por não ter aproveitado mais a vida. Ela me disse isso tantas vezes no final…

Meu Deus, o quanto ela não sofreu nesses últimos anos, com toda a consciência de si que a velhice profunda a fez adquirir.

Alguns anos atrás, nós duas sentadas na mesa da cozinha, ela me perguntou: “Como chama isso que as pessoas têm quando fazem sexo? O prazer”. Eu respondi que era “orgasmo”, e ela: “Isso”. “Eu nunca tive orgasmo e só agora sei o que é. Se eu soubesse antes…”.

Não sei o que ela teria feito se soubesse antes o que era o orgasmo. Refletindo retrospectivamente, e por tudo o que ela me contou sobre sua vida, acho que ela não teria feito nada.

Mas penso que essa frase “Se eu soubesse antes” quer dizer muitas outras coisas. Quer dizer que, se ela soubesse o que era orgasmo, provavelmente não teria levado a vida que levou, teria dado mais ouvido a seus desejos – não só eróticos. Teria sabido ir atrás do que realmente queria fazer.

Quantas vezes ela repetiu a história de que uma vez, grávida da Stela, portanto ainda em 1950, menos de um ano depois de ter chegado ao Brasil, ela estava sentindo a vida conjugal tão insuportável, com a presença castradora e controladora da sogra e com a insensibilidade do meu pai aos desejos dela, que, num ímpeto, resolveu sair de casa. Disse que foi até a esquina, mas, chegando lá, se deu conta de que não tinha para onde ir. Seu irmão morava nos Estados Unidos, tinha roubado os documentos dela, e o restante da família que morava no Brasil era todo do lado do meu pai. Ela não tinha dinheiro, não falava a língua e estava grávida. Voltou para casa, esperando ao menos encontrar algum desespero no meu pai, mas nada. Ele não se deu ao trabalho de ir atrás dela porque sabia que ela voltaria.

Pode ser que saber o que era o orgasmo pudesse ter de fato alterado o curso dessa história e pode ser também que a crença inabalável que ela tinha no destino se devesse justamente à ignorância do que fosse um orgasmo.

Mas, como diz um ditado ídiche, “Se minha vó tivesse rodas, ela seria um bonde”.

Imaginar a mãe em fuga, parada numa rua, sem saída possível. Vertigem das imagens de um passado que eu vejo, mas do qual não participei. Vertigem das cenas que existiram e que se desfizeram. Onde está essa esquina? Se eu for até lá, poderei reproduzir esse desamparo?

A mãe desamparada no passado. Ir até ela e soprar naquele ouvido a palavra orgasmo.