[N. 89 | 2023]

Coisas que não quero saber [fragmento]

Deborah Levy

Enquanto eu mordia a polpa doce e alaranjada do damasco, peguei-me pensando em algumas mulheres – na verdade, nas mães que ficavam no pátio da escola junto comigo esperando a saída dos filhos. Agora que éramos mães, éramos todas uma sombra de nossa antiga existência, perseguidas pela mulher que costumávamos ser antes de termos filhos. Não sabíamos o que fazer com ela, essa moça impetuosa e independente que nos seguia para todo lado, gritando e apontando o dedo enquanto empurrávamos o carrinho de bebê debaixo da chuva inglesa. Tentávamos retrucar, mas nos faltava a linguagem para explicar que não tínhamos simplesmente “adquirido” um filho – tínhamos nos metamorfoseado (um corpo novo e pesado, leite nos seios, programadas pelos hormônios para correr até nossos bebês quando choravam) em alguém que não compreendíamos de todo.

A fertilidade da mulher e a gravidez não só continuam a fascinar nossa imaginação coletiva, como também servem de santuário para o sagrado […]. Hoje, a maternidade está imbuída do que sobreviveu ao sentimento religioso.

Julia Kristeva, Motherhood Today (2005)

O mundo inteiro nunca deixou de imaginar a “Mãe” como “a Mulher”. Não foi nada fácil superar a fantasia nostálgica do mundo em relação ao nosso objetivo de vida. O problema era que nós também tínhamos todo tipo de ideias extravagantes sobre o que a Mãe deveria “ser” e éramos atormentadas pelo desejo de não decepcionar. Ainda não havíamos compreendido totalmente que a Mãe, como imaginada e politizada pelo sistema social, era uma ilusão. O mundo amava a ilusão mais do que amava a mãe. Ainda assim, nos sentíamos culpadas por revelar essa ilusão caso o nicho que construíssemos para nós e nossos filhos tão amados ruísse ao redor do nosso tênis enlameado – provavelmente costurado por crianças escravas em confecções clandestinas espalhadas por todo o planeta. Para mim era um mistério, porque me parecia que o mundo masculino e seus acordos políticos (nunca a favor de crianças e mulheres) na verdade tinha ciúmes da paixão que sentíamos por nossos bebês. Como tudo o que envolve amor, nossos filhos nos faziam felizes – e infelizes – além da conta, mas nunca tão desgraçadas quanto nos faz sentir o neopatriarcado do século XXI. Ele exige que sejamos passivas porém ambiciosas, maternais porém sexualmente ativas, abnegadas porém realizadas – temos de ser a Mulher Moderna e, ao mesmo tempo, nos submeter a todo tipo de humilhação, tanto econômica quanto doméstica. Embora nos sintamos culpadas quase o tempo todo em relação a tudo, não sabemos ao certo o que estamos fazendo de errado.

Alguma coisa estranha aconteceu no modo como um grupo específico de mulheres com quem eu me encontrava no pátio da escola usava a linguagem. Elas diziam palavras que soavam infantis, mas não eram interessantes como as criadas pelas crianças. Palavras como reclaminho gemidinho sorrisinho lindinho felizinho leguminho narizinho. E criavam uma distância incômoda entre si e as mães da classe trabalhadora, a quem chamavam de “proletas”. As proletas no pátio tinham menos dinheiro e educação, e comiam mais chocolate, saquinhos de batata e outras guloseimas. Diziam coisas como, Ai, meu Deus, eu não sabia para onde olhar. Colocando na balança, acho as palavras das proletas muito mais interessantes.

Ai meu Deus
Eu não sabia para onde olhar

Se as mulheres ai-meu-deus canalizavam William Blake, a linguagem que saía da boca das felizinhas reclaminhas de sorrisinho e narizinho não era nem madura nem imatura. Eu prestava atenção nessas mulheres aturdidas porque sabia que estávamos todas exaustas e aproveitando o máximo do que nosso nicho no sistema social tinha a nos oferecer. Esse fato nos tornava um pouco estranhas, achava eu.

Adrienne Rich, que eu estava lendo na época, descreveu exatamente o que acontece: “Mulher nenhuma está realmente integrada às instituições fundadas pela consciência masculina.” Isso é o que havia de estranho. Eu começava a perceber que a Maternidade era uma instituição fundada pela consciência masculina. Essa consciência masculina era a inconsciência dos homens. Ela exigia que suas companheiras, que também eram mães, abdicassem do próprio desejo, realizassem o desejo deles e depois o de todo mundo. Fizemos esforço para anular nossos desejos e descobrimos que tínhamos talento para a coisa. E dedicamos boa parte da nossa energia vital à criação de um lar para nossos filhos e nossos homens.

A casa quer dizer casa familiar, um lugar feito especialmente para filhos e homens de modo a lhes conter a rebeldia e distraí-los do desejo de aventura e fuga que lhes pertence desde os primórdios. Ao tratar desse assunto, o mais difícil é chegar aos termos mais básicos e simples que definem como as mulheres veem o fantástico desafio que a casa representa: proporcionar um centro para os filhos e os homens ao mesmo tempo. […] A casa criada pela mulher é uma Utopia. Ela não resiste – é-lhe impossível não fazer com que os seus se interessem não pela felicidade, mas por sua busca.

Marguerite Duras, A vida material (1987)

Não há quem o tenha tido com mais frieza, ou mais delicadeza, do que Marguerite Duras. Não há teoria crítica feminista ou filosofia que faça um corte mais profundo – não que eu tenha lido. Marguerite usava óculos enormes e tinha um ego enorme. Seu ego enorme a ajudou a esmagar as ilusões sobre feminilidade com a sola dos dois sapatos, que eram menores do que seus óculos. Quando não estava bêbada demais, encontrava a energia intelectual para seguir adiante e esmagar mais uma. Quando Orwell descreveu o puro egoísmo como qualidade obrigatória aos escritores, talvez não estivesse pensando no puro egoísmo das escritoras. Até a mais arrogante das escritoras precisa se empenhar muito para construir um ego robusto o bastante para conseguir atravessar o mês de janeiro, tanto mais para chegar até dezembro. Ouço o ego de Duras, obtido a duras penas, falando comigo, comigo, comigo, em todas as épocas do ano.

Homens e mulheres são diferentes, afinal. Ser mãe não é o mesmo que ser pai. A maternidade pressupõe que a mulher entregue o corpo ao filho, aos seus filhos; dentro dela eles estão como se estivessem numa montanha, num jardim; eles a consomem, a chutam, dormem nela; e ela se deixa consumir, e às vezes dorme porque eles estão no seu corpo. Nada parecido acontece aos pais.

Mas talvez as mulheres ocultem o próprio desespero no processo de serem mães e esposas. Talvez, durante toda a vida, percam seu reino de direito no desespero de cada dia. Talvez suas aspirações da juventude, sua força, seu amor, tudo se escoe por feridas infligidas e sofridas de maneira totalmente legal. Talvez seja isso – mulheres e martírios andam juntos. Talvez as mulheres que se realizam por completo ostentando a própria competência, a habilidade nos jogos, a culinária e a virtude não valham um tostão.

Marguerite Duras, A vida material (1987)

Então Marguerite Duras está sugerindo que as mulheres podem ser tanto um continente escuro quanto um bairro bem iluminado? Mesmo que a maternidade seja o único significante feminino, sabemos que o bebê no nosso colo, se saudável e bem cuidado, acabará por se afastar do nosso seio e ver outra pessoa. Ele verá um outro. Verá o mundo e se apaixonará por ele. Algumas mães enlouquecem porque o mundo que as fez se sentir inúteis é o mesmo pelo qual os filhos se apaixonam. O bairro da feminilidade não é bom para viver. Nem é sensato buscar refúgio nos filhos porque a tendência dos filhos é sempre se aventurar no mundo para encontrar outra pessoa. Sim, diversas vezes chamei minhas filhas de volta para lhes fechar o zíper do casaco, mesmo sabendo que preferiam sentir frio e ser livres.