[N.91| 2023]

A maternidade é sempre política para mães negras

Dani McClain

Quando eu tinha uns sete ou oito anos, minha mãe costumava colocar para tocar, todo dia antes de sairmos para a escola e para o trabalho, a música Greatest Love of All, da Whitney Houston, e cantávamos junto do início ao fim. De pé na sala, logo antes de vestirmos nossos casacos, entoávamos aquela letra que fala de autossuficiência e de perseverança, e encontrávamos, por meio da música, uma espécie de armadura. Nos deixávamos embalar pela complexidade e pelo poder da voz da Whitney, alcançando as notas mais altas junto com ela. Não me lembro quanto tempo isso durou, mas foi um ritual definidor da minha infância. Minha filha Isabel, de dois anos, ainda é muito pequena, mas quero fazer algo parecido com ela. As crianças negras e suas famílias precisam disso. Precisamos de alguma espécie de hino, de algum lembrete melódico, para nós mesmos e para os outros, de que não somos as pessoas que o mundo lá fora diz que somos: criminosos, descartáveis, preguiçosos, indignos de saúde, de paz ou de riso.

Mães pretas como eu sabem que a maternidade é profundamente política. As mulheres negras são mais propensas a morrer durante a gravidez ou no parto do que mulheres de qualquer outra raça. Eu considero minha própria mãe, que nunca se casou e que trabalhou em tempo integral durante toda a minha infância, como um modelo de maternagem, mas mensagens de uma guerra cultural que vêm tanto da esquerda quanto da direita sugerem que ela estaria aquém dos ideais maternos. Minha avó, minha bisavó, minhas tias e as pessoas mais velhas da comunidade apoiaram minha mãe enquanto ela me criava. O investimento dessas pessoas em mim e em outras crianças — algumas delas parentes, outras não — diz de uma ética com a qual todas e todos podemos aprender. A socióloga Patricia Hill Collins chamou isso de “outra-maternagem” (other-mothering), um sistema de cuidados em que as mães negras se responsabilizam e trabalham por todas as crianças negras em uma determinada comunidade. “Digo para minha filha o tempo todo: não vivemos para o ‘eu’; vivemos para o ‘nós’”, me disse Cat Brooks, mobilizadora social em Oakland.

Além de sermos outras-mães, tivemos que lutar pelo direito de sermos mães. Antes da Emancipação1, o filho de uma mulher escravizada era propriedade de outra pessoa. Proprietários de escravizados rotineiramente desestabilizavam a vida das pessoas escravizadas, rompendo estruturas de parentesco enraizadas no casamento e em laços de sangue; a família, como conceito, tornou-se elástica e inclusiva.

Por essa história, as mulheres afro-americanas tiveram que vivenciar uma forma diferente de maternidade para navegar pelo estilo de vida estadunidense. Se simplesmente aceitássemos o status quo sem desafiar as forças que sempre mantiveram as mulheres e as pessoas negras oprimidas, estaríamos participando da nossa própria destruição e da destruição de nossos filhos. Nos últimos anos, isso se tornou particularmente evidente, pois dezenas de mulheres e homens negros tiveram que se colocar diante das câmeras de televisão, lembrando ao mundo que seus filhos recém-assassinados eram seres humanos, que eram amados e motivo de alegria. As mães de filhos mortos pela violência policial ou pela milícia encarnam os medos mais profundos de qualquer mãe preta: de não sermos capazes de proteger adequadamente nossos filhos ou de prepará-los para um mundo que precisa ser convencido de seu valor. Muitos pais e mães relatam que o medo e a ansiedade aumentam quando se assume a responsabilidade de manter outro ser humano vivo e bem. Mas as mulheres pretas conhecem de maneira especial o medo – e aprendem como viver apesar dele e como metabolizá-lo para seus filhos, para que esse medo não os consuma.

No sonho febril que tem sido a vida nos EUA desde que Donald Trump conquistou o poder, alguns dos medos mais profundos das mulheres afro-americanas tornaram-se mais compreensíveis para a sociedade em geral. Ninguém jamais foi capaz de garantir que os próprios filhos passassem de forma segura para a idade adulta, mas pais e mães não negros, com dinheiro, cidadania e status de classe tinham uma vantagem sobre o resto de nós. Agora, até mesmo para muitos deles as ameaças e incertezas parecem se multiplicar a cada dia. A era Trump fez soar um alerta para aqueles que antes se sentiam invulneráveis às mudanças das marés da fortuna humana.

A família é, com frequência, a primeira instituição social a moldar a forma como entendemos nossas identidades e nossa política. Numa conjuntura em que Resist! (Resistir!), para muita gente, se tornou um grito de guerra em resposta à administração Trump, que pisoteia as normas, é fundamental olhar para as mensagens comunicadas dentro das nossas famílias e abordar de frente hipocrisias e inconsistências. Pesquisas sugerem que pais e mães brancos, em especial, precisam de ajuda para entender a família como um local de educação política, principalmente quando se trata de transmitir valores antirracistas. Um estudo de 2007 publicado no Journal of Marriage and Family, envolvendo 17 mil famílias com crianças no jardim de infância, constatou que pais e mães afro-americanos têm cerca de três vezes mais chances de falar sobre raça do que pais e mães brancos. 75% dos pais e mães brancos no estudo nunca ou quase nunca conversavam sobre raça. De acordo com uma pesquisa destacada no livro NurtureShock, de 2009, pais e mães brancos comunicam mensagens de que a cor da pele não importa e de que todos são iguais – mensagens que as crianças reconhecem como mentiras com base em suas próprias experiências, desde a primeira infância. Quando pressionados, esses pais geralmente admitem que não sabem como falar sobre o assunto. As mães negras, por outro lado, não têm medo de falar sobre raça, mas temem o impacto da opressão racista. Temos medo porque não temos escolha a não ser soltar nossas crias amadas em ambientes – consultórios médicos, hospitais, creches, parquinhos, escolas – onde a supremacia branca está muitas vezes impregnada no tecido institucional, e é praticada tanto conscientemente quanto involuntariamente pelas pessoas, cujo papel deveria ser cuidar das crianças. Nós, mães negras, não podemos nos dar ao luxo de enfiar a cabeça na areia e esperar que nossos filhos aprendam sobre raça e poder à medida que eles crescem. Pelo contrário, nós precisamos agir como amortecedoras e como tradutoras entre eles e o mundo, desde os primeiros dias.

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Sou filha de uma mulher preta solteira, e hoje sou uma mulher preta solteira criando uma menina. Eu cresci sem um pai em casa. Minha filha também está crescendo assim, desde o seu primeiro aniversário. Eu não conheci meu pai até completar vinte anos. Nosso encontro foi curativo, mas ele não fez falta da maneira como algumas pessoas supõem. Cresci em uma casa no subúrbio – a mesma casa onde minha mãe, suas irmãs e, antes, o pai delas, cresceram. Minha avó materna cresceu logo na esquina. Tínhamos uma grande piscina no quintal, onde eu nadava com meus primos e com outras crianças da vizinhança. Cresci jogando futebol, andando a cavalo, esquiando, e nas poucas ocasiões em que me chamaram de “garota Cosby ”2, eu sabia o que aquilo significava: era privilegiada, talvez até um pouco mimada.

Sempre tive um muito orgulho da minha criação. Nada do que as pessoas pressupunham sobre famílias chefiadas por “mães solo” se aplicava à minha vida. Como filha única, eu era o foco da atenção e dos recursos da minha mãe. Esse investimento no meu sucesso e na minha felicidade foi complementado pelo amor, tempo e dinheiro de outros adultos da nossa família, especialmente da minha tia materna Pam, que morou comigo e com a minha mãe desde que eu tinha sete anos. Nossa família extensa era tudo e, enquanto a palavra “família” parecia significar, para muita gente, mãe, pai e irmãos, para mim ela sempre significou tias, tios, primos, avós e os mais velhos da vizinhança, que nos viam crescer.

Minha filha, assim como eu, está crescendo sem um pai em casa, mas as semelhanças entre as nossas experiências terminam aí. Meu pai morava do outro lado dos EUA – ele se mudou para o Oeste antes de eu nascer para fazer uma pós-graduação – e não tivemos contato até o momento em que eu o procurei e iniciei uma conversa que nos levou a manter contato por alguns anos. O pai da minha filha também mora em outra cidade, mas esteve ao meu lado durante o seu nascimento e cuidou dela diariamente durante seu primeiro ano de vida, enquanto ainda estávamos juntos e antes dele se mudar a trabalho. Ele a visita com frequência e os dois conversam por vídeo diariamente; eles têm uma relação que eu apoio e que nos traz alegria. E nossa família não é a única. Em 2013, um estudo do Centers for Disease Control and Prevention, do governo estadunidense, corrigiu a impressão, equivocada, de que os homens negros se esquivariam de seus deveres parentais de maneira desproporcional. Os homens negros são geralmente mais propensos do que os homens de outras raças a ler para seus filhos pequenos, alimentá-los, dar banho e brincar com eles diariamente, independentemente de viverem ou não na mesma casa. Quando são levadas em consideração as taxas de natalidade fora do casamento para determinar o envolvimento dos pais na criação das crianças, acaba-se construindo uma falsa narrativa. Só porque um pai não é casado com a mãe de seu filho ou filha, não significa que ele seja um pai ausente.

Para o pai da minha filha e para mim, não é fácil, mas nos esforçamos. Depois do nosso rompimento, fizemos terapia por cerca de seis meses para aprendermos a cuidar dela juntos, apesar da separação. Fico orgulhosa de nós quando leio a seguinte frase em um estudo de 2008 sobre co-parentalidade fora do casamento: “Concluímos que a capacidade de mães e pais de trabalharem juntos na criação de uma criança em casas diferentes ajuda a manter os pais não residentes conectados com seus filhos e que os programas destinados a melhorar a capacidade de comunicação entre pais e mães podem trazer benefícios para as crianças, independentemente de o relacionamento romântico dos pais seguir ou não intacto.” No nosso caso, criamos nosso próprio programa, com a supervisão de uma mulher preta, com quem conversamos durante alguns períodos dolorosos, e ela nos ajudou a colocar no papel nossas metas e compromissos. Agora, aqui estamos nós – trilhando nosso percurso à medida que caminhamos.

Meu pai e o pai da minha filha são homens pretos, com educação superior, vindos de famílias de classe média. Ambos cresceram com seus pais em casa. Quando tiveram suas filhas, eles tinham um emprego remunerado ou estavam investindo em sua formação para progredir profissionalmente. Eles não foram arrancados de nós pela morte, pelo sistema de justiça criminal ou pelo “chamado das ruas”. Mas nem todas as mães solteiras negras têm uma história familiar tão favorável. Para cada cem mulheres negras em comunidades de todo o país, existem apenas 83 homens negros. “Os homens restantes – 1,5 milhão deles – estão, de certa forma, desaparecidos”, informou o The New York Times, em abril de 2015, e o encarceramento e a morte prematura são os culpados. Não há uma diferença numérica comparável entre as pessoas brancas. Para cada cem mulheres brancas, existem 99 homens brancos. Mas quase um em cada doze homens negros entre 25 e 54 anos está atrás das grades, uma taxa cinco vezes maior que a dos homens não negros da mesma idade. O desequilíbrio entre meninos negros vivos e livres e meninas negras vivas e livres começa já durante a adolescência e atinge seu pico por volta dos 30 anos. (Para ser bem clara, as mulheres negras também são desproporcionalmente encarceradas: uma em cada 200 mulheres negras está atrás das grades, em comparação com uma em cada 500 mulheres não negras.) Esses dados ajudam a elucidar por que 30% das famílias afro-americanas nos EUA são chefiadas por mulheres solteiras, em comparação com 13% das famílias estadunidenses em geral.

G. Rosaline Preudhomme, uma avó de 73 anos e mobilizadora social, ajudou a aprovar a Iniciativa 71 de Washington, que legalizou a maconha. A obra de Preudhomme busca abordar as razões sistêmicas para o “desaparecimento” dos homens negros. Cinquenta mil pessoas estavam atrás das grades por crimes não violentos, envolvendo drogas em 1980. Em 1997, esse número saltou para mais de 400 mil, perto de onde permanece até hoje. Um estudo do Economic Policy Institute constatou que o encarceramento dos pais causa sérios danos a filhos e filhas. Filhos de pais encarcerados sofrem de mais problemas de saúde física e mental do que aqueles cujos pais não estão presos. Ainda assim, observa Preudhomme, apesar da tremenda pressão que as políticas punitivas antidrogas exerceram sobre as comunidades negras nos EUA nos últimos 40 anos, nossas famílias persistem. Isso ocorre, em parte, porque os afro-americanos têm uma estrutura para organizar a vida familiar que antecede a guerra às drogas e acomoda a ausência ou a presença intermitente dos pais. “É o espírito resiliente das mulheres pretas que nos fez seguir adiante por 400 anos, por mais que nossas vidas familiares fossem sempre interrompidas”, diz Preudhomme.

Por adotarem uma abordagem comunitária para a criação dos filhos, os afro-americanos podem estar fora de sintonia com a cultura branca estadunidense de classe média, que se tornou mais centrada na família nuclear em meados do século passado, com o advento da suburbanização em massa. Mas estamos totalmente em sintonia com a forma como o resto do mundo funcionou durante a maior parte da história. Várias pesquisas apontam que os países ocidentais, educados, industrializados, ricos e democráticos, com seu foco na família nuclear, criam filhos naquilo que o antropólogo David Lancy chamou de “um afastamento de todas as outras culturas humanas”. A maioria dos humanos ao longo do tempo e do espaço são “educadores cooperativos” e dependem de mulheres adultas e crianças mais velhas da família extensa e da comunidade para cuidar dos mais novos.

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Quando penso na minha própria infância, sendo criada por minha mãe e minha tia materna, as primeiras palavras que vêm à mente são “calma” e “equilibrada”. Nos dez anos em que morávamos as três juntas, antes de eu sair de casa para ir para a faculdade, lembro-me de apenas uma ou duas vezes em que alguma de nós levantou a voz ou em que houve silêncios pesados. Isso não quer dizer que apenas os homens têm problemas com seus temperamentos, mas os homens são, com mais frequência, socializados para acreditar que a raiva explosiva, seguida de um retraimento amuado, são formas apropriadas de se comunicar. Cresci sem ser ameaçada com frases como “espere até seu pai chegar em casa”, sem ver as necessidades de um adulto priorizadas em detrimento das de outro. Eu via duas adultas se tratando com amor, respeito e humor. Via que era possível ser uma adulta inteira e saudável sem casamento e, no caso da minha tia, sem filhos biológicos. Ao longo dos meus 30 anos, era solidária, embora ficasse sempre um tanto perplexa ao ver minhas amigas lutando para fazer as pazes com seu status de solteiras. Muitas delas pareciam achar improvável ter filhos, porque não tinham nenhum parceiro em vista, mas suas dificuldades me pareciam simplesmente outra maneira de viver a vida. Por causa da minha educação, me sentia livre da suposição de que casamento e maternidade devem andar juntos. A glorificação do casamento pela cultura dominante deixa muitas pessoas se sentindo desnecessariamente desanimadas e sem opções quando esse tipo de união não se materializa.

No último dia dos pais, senti uma onda de identificação quando vi a escritora feminista negra Amber J. Phillips tuitando sobre o próprio pai: “Como ele optou por não ser [um] pai, fui criada com a ideia radical de que, na verdade, não preciso de um patriarca na minha casa ou na minha vida para ser feliz ou para ter uma falsa sensação de sucesso.” Em seu ensaio de 1987, The Meaning of Motherhood in Black Culture and Black Mother/Daughter Relationships, Patricia Hill Collins escreve que crescer em uma casa como a minha, em que é comum ter mães que trabalham fora e contar com o apoio da família extensa, cria uma espécie de efeito dominó. Geração após geração, as mulheres negras rejeitam ideias de que a família patriarcal – e, por extensão, o patriarcado na sociedade em geral – é normal. Collins sugere que a escravidão e as realidades econômicas das leis Jim Crow3 dificultaram, para as famílias afro-americanas, a criação de esferas de influência separadas, baseadas em gênero (o pai como provedor econômico e chefe de família, a mãe como educadora e subordinada), que a América branca louvava como a organização ideal da vida familiar. Em vez disso, as meninas negras crescem com um senso de empoderamento e de possibilidade que as meninas de outras raças não têm como modelo em casa ou em suas comunidades. “Como as mães afro-americanas têm um relacionamento distinto com o patriarcado branco, elas podem ser menos propensas a socializar suas filhas nos papéis ditados por esse patriarcado, de subordinadas”, escreve Collins.

As famílias afro-americanas desenvolveram a tradição de passar para os filhos uma cultura que repele as forças da supremacia branca e cria amplas oportunidades para questionar o patriarcado. Ainda assim, mães negras solteiras e suas filhas não são valorizadas por terem as chaves para resistir à opressão patriarcal. Nossas redes familiares extensas e maneiras coletivas de cuidar das crianças, bem como nossa rejeição da família nuclear como a única forma de organizar nossas vidas, têm sido consistentemente desdenhadas ao longo da história. A narrativa dominante diz que somos pobres, que drenamos os cofres públicos e que, portanto, somos uma praga na sociedade. As zonas de segurança criadas por progenitores negros, com a liderança de mães negras, são lugares onde aprendemos que não somos quem o mundo nos diz que somos – e foram e seguem sendo criticadas por todos.

Aqueles que promovem o casamento como política social querem que acreditemos que o casamento automaticamente tirará os pobres da situação de pobreza. Só que pobre + pobre não é igual à classe média. O resultado são dois adultos pobres, criando crianças pobres e tentando descobrir como sobreviver. O que se perde nessa conversa é o impacto que o trabalho mal remunerado tem sobre as famílias negras. A questão não deveria ser se podemos ou não juntar dois contracheques miseráveis, mas se nós, como indivíduos, podemos receber um salário justo por nosso trabalho. Em 2016, quase 40% das famílias afro-americanas com filhos e chefiadas por mulheres viviam na pobreza – o que significa que mais de 60% não viviam. Por que não falamos sobre como essas 60% estão se virando bem ou por quais razões essas 40% realmente estão empobrecidas?

Os governos não estão equipados para entender todas as pressões que casais de baixa renda enfrentam, e não deveriam se intrometer em relacionamentos românticos. O que os governos estão em tese preparados para fazer é enfrentar a pobreza de frente, reconhecendo e apoiando os direitos econômicos e sociais das pessoas. Políticas sociais como licenças maternidade e paternidade remuneradas, educação infantil universal e assistência médica universal ajudariam muito a aliviar as pressões financeiras enfrentadas pelas mães solteiras. Esse tipo de intervenção do governo é o motivo pelo qual, na Dinamarca, uma mãe solteira com filhos não tem mais chances de ser pobre do que uma mãe casada com filhos.

A complexa história da formação das famílias e da maternidade afro-americanas, de toda forma, não aponta apenas para o combate aos estigmas e a correção de informações falsas; muitas vezes, o impacto psíquico e emocional de conduzir uma família por conta própria é ignorado. Eu mesma já fiz isso. Ao escrever sobre mulheres negras e casamento no passado, deixei de reconhecer que algumas de nós realmente aspiramos à narrativa de sermos escolhidas, de vivermos felizes para sempre. Sim, é importante que possamos criar filhos com sucesso sem estarmos comprometidas com parceiros. Mas também podemos refletir sobre como é deprimente termos que fazer isso com tanta frequência. Não foi à toa que algumas mulheres negras ficaram empolgadas quando, finalmente, depois de 12 temporadas, houve uma mulher negra no programa de televisão Bachelorette . Algumas de nós querem amor, casamento e um carrinho de bebê – exatamente nessa ordem, e de preferência com homens negros. É importante reconhecer como nos sentimos quando esses desejos estão fora do nosso alcance de uma maneira que é simplesmente diferente para outras mulheres.

Acrescente-se à angústia existencial a responsabilidade diária de estar no comando. Mesmo contando com a ajuda da família e com dinheiro suficiente para custear as crianças, é cansativo ser a única pessoa adulta responsável por cozinhar, dar banho, ler, brincar e faxinar naqueles dias ou horas em que estamos sozinhas. Nunca deixo de considerar importante que eu tinha 100% de certeza de que queria ser mãe quando tive minha filha. Não consigo me imaginar dedicando à maternidade a energia que ela exige e merece se eu tivesse entrado nela com relutância, principalmente agora, quando muitas vezes somos só nós duas. Eu gosto do trabalho de ser mãe, e quase nunca sinto que estou sendo desleixada ou que estou fingindo estar feliz, mas houve momentos em que meu espírito sentiu tamanho peso. Me lembrei desses momentos, em que pisquei para conter as lágrimas, quando li o livro de memórias de Asha Bandele, Something Like Beautiful, sobre como ela criou a filha enquanto o marido estava preso e, depois, foi deportado. Ela escreve: “Eu disse a mim mesma que, se chorasse, estaria dando um mau exemplo para minha filha. Outras pessoas me disseram exatamente a mesma coisa. Me disseram que eu nunca fosse vítima, as mulheres negras não são vítimas e não somos fracas… Naqueles dias de mãe alfa que vieram depois da reforma do bem-estar social, eu tinha clareza de que ser uma vítima, mostrando qualquer fraqueza, seria punido com um isolamento completo e com uma total perda de respeito. Eu era mãe, mãe solteira, mãe preta solteira. Fiz parte de uma tradição de mulheres que não se dobram e não quebram. Era isso que eu dizia, foi assim que passei a me definir. Como alguém sem espaço para cometer erros.”

Vejo pouco espaço para erros na minha própria vida. Tenho que me policiar para que a maternidade não seja mais um lugar onde pratico o perfeccionismo. Tenho muitos motivos para tentar exercê-la o mais próximo possível da perfeição, já que a narrativa dominante diz que, como mãe solteira e filha de uma mãe solteira, eu seria incapaz de ser ou de criar uma pessoa ajustada e bem-sucedida. Embora eu saiba desde a infância como essa conversa é mesquinha e vazia, ainda sou afetada por esse estigma. À medida que envelheço, também consigo ver o perigo de ser muito defensiva, de refutar as suposições dos outros antes de explorar de maneira honesta as minhas próprias verdades, cheias de nuances. Em 2007, a cantora e compositora Meshell Ndegeocello lançou um álbum chamado The World Has Made Me the Man of My Dreams (O mundo me tornou o homem dos meus sonhos). Esse título me lembra que aprender a navegar sozinha, com a ajuda de parentes e amigos, por um mundo muitas vezes inóspito, pode fazer de nós nossas próprias fortalezas. É aí que a parceria com um homem pode começar a parecer desnecessária: legal quando surge, mas de forma alguma indispensável para nossa sobrevivência ou felicidade. Essa força pode ser um motivo de orgulho, mas também de luto, se pensarmos em todas as razões estruturais e históricas que as mulheres negras tiveram para serem tão independentes, ou que os homens negros tiveram para muitas vezes não estarem disponíveis ou dispostos a oferecer ajuda.

É um dia de fevereiro, Isobel e eu estamos no parquinho. Eu a empurro no balanço e percebo que ela não consegue tirar os olhos do balanço ao lado, onde um pai está empurrando a filha. Eu penso comigo mesma: conheço esse sentimento. É aquele sentimento de “Por que não tenho isso?”. Aquele sentimento de “Onde está meu pai?”. De “eu quero alguém maior, mais bagunceiro, mais grosso, mais áspero e mais bobo do que a mamãe”. Mas a verdade é que estou projetando. Minha filha é observadora; ela é super bisbilhoteira e pode estar pensando em qualquer coisa. Na verdade, ela passa um bom tempo no parquinho com o pai, embora não diariamente. Mas minha mente vai para aquele lugar porque ainda estou, aos 39 anos, processando meus sentimentos em relação ao abandono e à perda. Não quero isso para minha filha. Não quero que ela conheça esse sentimento de falta. Se acontecer, quero que ela saiba que pode expressá-lo, colocá-lo para fora. Na minha experiência, o silêncio em torno de uma ausência pode fazer mais mal do que a própria ausência. Para a Isobel e para mim, o desafio é encontrar – criar – um espaço onde possamos ser vulneráveis e reconhecer a dor sem ceder à narrativa de que somos uma “família desfeita”. Nossa família é perfeitamente inteira.

  1. A proclamação da emancipação foi assinada pelo presidente Abraham Lincoln em 1863 e decretava a libertação dos escravizados em vários estados dos EUA. ↩︎
  2. Referência ao programa de televisão The Cosby Show, da década de 1980, que retratava uma família afro-americana de classe média alta e bem sucedida. ↩︎
  3. Leis estaduais de segregação racial, toleradas pela União Federal dos EUA até os anos 1960. ↩︎