[N.105 | 2024]

Imunidade – germes, vacinas e outros medos [fragmento]

Eula Biss

Nas semanas seguintes ao nascimento do meu filho, um vento de março soprou do lago e atravessou nosso apartamento, onde todas as noites eu ficava sentada por horas, numa cadeira de balanço de madeira dura, balançando meu bebê inquieto e olhando as janelas pelas quais mal conseguia ver as sombras dos galhos das árvores sacudindo ao vento. A cadeira rangia, o vento gemia, escutei uma batida no vidro e um bater de asas em torno do peitoril, e tive certeza de que um vampiro estava lá, tentando entrar. No dia seguinte, eu lembraria que havia um mastro perto daquela janela, com uma bandeira que tremulava e uma linha que batia, mas naquele momento senti terror. Só me acalmei com minha crença, inculcada por um então recente filme de vampiros, de que o vampiro não poderia entrar sem minha permissão.

Eu evitava espelhos no escuro, quando dormia tinha pesadelos sangrentos que me acordavam e via coisas que estavam paradas se movendo. Durante o dia, comecei a pensar que o lago estava cantando para mim. Era um único tom baixo que só eu podia ouvir. Fiquei tão preocupada quanto confortada com isso. Eu mantinha duas jarras grandes de água potável sobre a mesa, ao lado da cadeira de balanço. Olhando para as jarras enquanto amamentava o bebê, lembrei-me de ter sido informada no hospital que havia perdido dois litros de sangue. Era um mistério para mim como alguém poderia saber quanto sangue eu perdera, porque ele foi todo para o chão. Muito mais tarde, meu marido me descreveria o som que o sangue fazia, o chape-chape das pequenas ondas que caíam enquanto o sangue empoçava e as enfermeiras tentavam segurá-lo na poça com toalhas. Mas nunca vi nada disso, nem sequer ouvi o som da queda do sangue, então as duas jarras de vidro eram minha única medida do que eu tinha perdido.

Na época, os vampiros estavam na moda. True Blood era uma nova série de televisão e Diários de um vampiro estava prestes a estrear, enquanto a saga de Crepúsculo se desenrolava numa série de livros que não li, seguida de filmes que não vi. Um carro estacionado na minha rua tinha um adesivo que dizia “Blood is the new black” [Sangue é o novo preto], e na minha primeira visita à livraria depois de dar à luz notei uma nova seção dedicada exclusivamente a romances de vampiros para adolescentes. Os vampiros faziam parte do zeitgeist, mas como mãe recente acabei me aficcionando por eles em parte porque eram uma maneira de eu pensar em outra coisa. O vampiro era uma metáfora, embora seja difícil dizer se uma metáfora do meu bebê ou de mim. Meu bebê dormia de dia e acordava a noite para se alimentar de mim, às vezes tirando sangue com suas mandíbulas desdentadas. Ficava mais vigoroso a cada dia, enquanto eu continuava fraca e pálida. Mas estava vivendo de sangue que não era meu.

Imediatamente após o nascimento do meu filho, em um parto que não teve outras complicações, meu útero inverteu, estourando vasos capilares e derramando sangue. Depois de dar à luz sem qualquer intervenção médica, sem analgésicos ou terapia intravenosa, fui levada às pressas para cirurgia e recebi anestesia geral. Acordei desorientada, tremendo muito sob uma pilha de cobertores aquecidos. “Isso acontece com todas as que vêm aqui”, observou minha parteira de um lugar claro e enevoado acima de mim, reforçando inadvertidamente meu sentimento de que, na verdade, tinha descido às margens do rio Estige. “Que lugar é este?”, eu me perguntava. Eu estava muito fraca para me mexer muito, mas, quando tentei, descobri que meu corpo estava preso a tubos e fios — eu tinha uma via intravenosa em cada braço, um cateter na perna, monitores no peito e uma máscara de oxigênio no rosto.

Sozinha na sala de recuperação, caí no sono e acordei com a sensação de que tinha parado de respirar. Máquinas apitavam ao meu redor. Uma enfermeira mexia nas máquinas e disse que achava que elas poderiam não estar funcionando muito bem, porque pareciam indicar que eu parara de respirar. Tossi e não consegui recuperar o fôlego, lutando para dizer “Me ajuda” antes de desmaiar. Um médico estava ao pé da minha cama quando voltei a mim e decidiu que eu receberia uma transfusão. Isso animou a enfermeira, que me disse que as transfusões são mágicas. Ela havia visto a cor voltar em pessoas cinzentas depois de terem recebido transfusões e pessoas que não conseguiam se mover, sentar e pedir comida. Sem usar as palavras “vida” ou “morte”, ela deixou transparecer que tinha visto mortos voltarem à vida.

Não senti que estava voltando à vida quando o sangue refrigerado entrou em minhas veias. Senti uma dor fria e sinistra se espalhando do meu braço para o meu peito. “Em geral as pessoas não estão acordadas quando fazemos isso”, disse o médico quando mencionei a temperatura do sangue. Ele estava precariamente de pé sobre um banquinho com rodas, improvisando um equipamento que segurava a bolsa de sangue mais perto do teto para que a gravidade o levasse para dentro do meu corpo com mais rapidez. De acordo com a política hospitalar, meu bebê não podia estar na sala de recuperação comigo e o médico não podia mudar isso, mas ele poderia tentar inventar uma maneira de fazer com que o sangue entrasse em mim mais rápido para que eu pudesse sair da sala de recuperação mais cedo. Minha visão começou a enegrecer nos cantos, meu estômago se revirou e o quarto girava ao meu redor. Tudo isso era normal, disse-me o médico, e acrescentou: “Lembre-se, não é o seu sangue”. 

Há muitas explicações para o medo extremo que senti nas semanas posteriores ao nascimento do meu filho: eu era mãe recente, estava longe da minha família, estava anêmica e delirava de fadiga. Mas a verdadeira fonte do meu medo me escapou até meses mais tarde, quando saí pelo lago Michigan em minha pequena canoa feita de madeira vergada, coberta com uma lona transparente. Eu estivera muitas vezes no lago com aquele barco e nunca sentira medo, mas dessa vez meu sangue latejava em meus ouvidos. Eu tinha acabado de me dar conta da imensidão de água debaixo de mim, de sua vasta e fria profundidade, estava dolorosamente consciente da fragilidade do meu barco. “Oh”, pensei, com certa decepção, “estou com medo da morte”.

Os vampiros são imortais, mas não estão exatamente vivos. “Morto-vivo” é o termo que Bram Stoker usou para definir Drácula. Frankensteins, zumbis e quaisquer outros cadáveres animados são todos mortos-vivos, em vez de imortais à maneira dos deuses gregos. O termo “morto-vivo” me divertiu nos meses em que eu me recuperava do nascimento do meu filho, um período em que eu frequentemente encontrava motivos para pensar nisso. Eu estava viva, e grata por isso, mas me sentia inteiramente morta-viva.

Injetaram nitroglicerina em mim durante a cirurgia que reparou meu útero. “A mesma coisa que é usada em bombas”, disse minha parteira. Eu queria os tubos intravenosos fora dos meus braços assim que saísse da sala de recuperação, para que pudesse segurar meu filho confortavelmente, mas a parteira explicou que eu precisava de antibióticos por via intravenosa para evitar infecção. “As mãos de muita gente passaram por você”, disse ela com franqueza. Algumas das mãos eram dela, para ajudar a tirar o bebê e a placenta de mim, mas também houve a minha cirurgia, que foi realizada exclusivamente com mãos humanas, sem deixar incisões. Quando fiquei sabendo disso, me pareceu tanto mágico como prosaico que a tecnologia que me salvou fosse simplesmente as mãos. Naturalmente, nossa tecnologia somos nós.

“As mãos de muita gente passaram por você” é uma frase que eu ouviria em minha cabeça por muito tempo após a cirurgia, junto com “Lembre-se, não é o seu sangue”. Como toda gravidez, a minha tinha me preparado para entender que meu corpo não era só meu e que seus limites eram mais porosos do que eu jamais tinha pensado. Não aceitei facilmente essa ideia e fiquei consternada com a quantidade de metáforas de violência política que me ocorreram quando eu estava grávida — invasão, ocupação e colonização. Mas, durante o parto, quando a violência ao meu corpo foi maior, eu estava mais consciente não de como é feia a dependência de um corpo em relação a outros corpos, mas da beleza disso. Tudo o que me aconteceu no hospital depois do parto do meu filho, mesmo coisas que eu entendo agora como frias ou brutais, eu as experimentei naquela época como radiante de humanidade. Alarmes soaram por mim, os médicos correram para mim, bolsas de sangue foram instaladas para mim, seguraram lascas de gelo junto aos meus lábios. Mãos humanas estavam em mim e em tudo que me tocava — na nitroglicerina, nas máquinas que monitoravam minha respiração, no sangue que não era meu. 

“Se você quiser entender qualquer momento da história, ou qualquer momento cultural, basta olhar para seus vampiros”, diz Eric Nuzum, autor de The Dead Travel Fast. Nossos vampiros não são como os vampiros vitorianos desapiedados, que tinham uma queda pelo sangue de bebês e não pareciam se sentir mal quanto a isso. Nossos vampiros estão cheios de conflitos. Alguns deles passam fome em vez de se alimentar de seres humanos, e alguns deles bebem sangue sintético. “Quase todos esses vampiros atuais estão lutando para serem morais”, observou a jornalista Margot Adler depois de mergulhar em romances e programas de televisão sobre vampiros, durante meses após a morte de seu marido. “É convencional falar sobre vampiros como seres sexuais, com seus poderes hipnóticos, suas penetrações íntimas, seu hábito de beber sangue e assim por diante”. ela escreveu. “Mas a maioria dos vampiros modernos fala menos de sexo do que de poder”.

O poder é evidentemente vampírico. Gostamos dele somente porque alguém não gosta. O poder é o que os filósofos chamariam de um bem posicional, ou seja, seu valor é determinado pelo quanto temos dele em comparação com outras pessoas. O privilégio também é um bem posicional, e há quem argumente que o mesmo acontece com a saúde.

Nossos vampiros, sejam eles o que forem, continuam a ser um lembrete de que nossos corpos são penetráveis. Um lembrete de que nos alimentamos uns dos outros, de que precisamos uns dos outros para viver. Nossos vampiros refletem tanto nossos terríveis apetites como nossa contenção angustiada. Quando lutam contra sua necessidade de sangue, nossos vampiros nos dão uma ideia daquilo que pedimos uns aos outros para viver.