[N.110 | 2024]

Depois que você voltar [fragmento]

Lorena Barbosa

IV–

O sorriso da minha melhor amiga, a última música da minha banda favorita, o cheiro do café da minha avó e as suas histórias que nunca tinham fim. A descoberta do meu corpo foi numa terça-feira à tarde. O calor subia pelas minhas pernas. O toque, leve como uma pluma, e a sensação de estar pecando. A culpa que me perseguiu por anos. Deveria ter ajoelhado no milho, pedido perdão a Deus. Deus, personagem presente nos meus pesadelos mais assombrosos. Deus, me condenando ao inferno por não acreditar nele. Por não ser boazinha. Por gozar. Por não ser amada. O rosto do meu professor favorito. Os passos do meu pai, quando ele ainda morava em nossa casa.

Todas essas memórias passavam pela minha cabeça enquanto ela me batia no sofá.

Seu corpo, consumido pelo ódio, inclinava-se sobre mim, com força. Ela estava de pé, tentando me jogar ao lugar mais submerso do estofado. “Isto é por amor, você está me ouvindo? Quem ama corrige, você está me ouvindo?” Não, eu não estava. Eu pensava, na verdade, sobre quando tinha dez anos de idade e cogitei fugir de casa com a Júlia, minha vizinha rebelde e melhor amiga da escola. Bolávamos planos mirabolantes, queríamos ser livres, viver num filme adolescente. Teríamos uma vida underground, bela e alternativa. Alguns anos depois, eu riria sozinha dessa ideia idiota. Não, eu não estava ouvindo a minha mãe. Eu pensava na Júlia. Nos nossos sonhos. Na primeira vez que nos beijamos.

De repente, voltei para a minha realidade. Você está me ouvindo?, disse ela. Estava. Olhei no fundo dos seus olhos. Era a primeira vez que isso acontecia. Como numa espécie de lapso de racionalidade, ela se assustou. Olhou para mim com tanto medo que me lembrei da sensação de acordar assustada, depois de ser mandada para o inferno por Deus. Era um medo familiar. Medo de ser sozinha, de ser muito má, de ser descoberta e condenada por isso. Medo de que todos vejam o quanto sou humana, e que sinto muito por isso. Queria ser qualquer outra coisa. Lembrei de quando estava na escola e me compararam a um cavalo. Naquele momento, desejei muito ser um. Queria também ser o carpete bonito de uma mulher rica, ou a memória de uma pessoa morta. Qualquer coisa, menos um ser humano do sexo feminino, do corpo preto, cujas pernas eram acertadas pelas mãos da sua linda mãe. Entre muitos pensamentos, este também me atravessava: o quanto ela era linda.

*

Você sente, de repente, dor. Uma lágrima cai dos seus olhos, na frente da sua filha. Ela percebe. Você está absurdamente vulnerável, tem medo de ser taxada de ridícula. De ser descoberta. De que ela perceba que você também está perdida, que você também sofre, que você também tem pesadelos com Deus e não consegue dormir. Que você também odeia aquela vida de merda. Que você não se acha linda.

*

Eu estava ouvindo. Ela voltou-se para mim: bateu o chinelo no meu rosto.