[N.111 | 2024]

Porque a vida não basta / Apontamentos sobre morrer e nascer de novo [fragmento]

Flavia Carvalho

XII

O que realmente vai parar dentro de um livro é
um mistério sobretudo para quem o escreveu.
Elena Ferrante

Em A teta racional, de Giovana Madalosso, há um momento comovente e honesto sobre a maternidade:

[…] virou-se para mim e disse: mãe sofre, minha filha, você vai ver. Ela nem precisava me dizer, eu já estava vendo. Ou pelo menos começando a ver, porque desde que meu filho nasceu, eu andava sentindo umas coisas estranhas. Era como se o meu emocional tivesse sofrido um corte mais profundo e ganhado uma nova camada, que me deixava experimentar mais amor e mais felicidade, mas também mais medo e mais dor.

O diálogo faz parte de um conto narrado por uma mulher que engravidou de uma “trepada de desespero” e agora está sozinha com seu recém-nascido, tentando entender (e aceitar) sua nova realidade. E, no entanto, os sentimentos de medo, alegria, solidão e dor estão em cada uma de nós, talvez em gradações diferentes.

Foi em 2011 a minha experiência acachapante. Enquanto escrevo este texto, crio coragem e busco meu diário dos meses que antecederam o nascimento da minha filha. Os escritos são de 2010, quando em nada eu conseguia me encontrar. Chego em meados de dezembro, o dia em que resolvi fazer xixi num palito. Eu ia à terapia e dizia que ficar grávida era uma forma muito legítima de procrastinar a escrita de uma tese. A gravidez me deu um objetivo: eu estava fazendo uma vida dentro de mim. Nada nem ninguém é capaz de nos preparar para isso, quer seja nosso maior sonho ou um grande acidente. Ou seria somente eu?

Eu não estava preparada para entender que a minha vida tinha acabado — a vida que eu havia conhecido até ali. Que eu tinha morrido, e que uma nova pessoa tinha acabado de nascer. Não a minha filha, claro, ela também, mas eu era outra pessoa e olhava o mundo pela primeira vez e não me dava conta do que ele me oferecia ou do que pedia de mim. Eu não dormia, não conseguia ter foco, não tinha tempo para ver séries, e quem era aquela pessoa que dormia ao meu lado e que até o dia anterior era a mais importante para mim? Passei meses chorando debaixo do chuveiro, para que ninguém soubesse da minha angústia. Acaso eu não queria ser mãe? Não tinha sido esse meu pensamento obsessivo desde que eu completara 33 anos e decidira unilateralmente abandonar métodos contraceptivos, a despeito de uma tese que precisava ser escrita e defendida? Seria difícil demais explicar o terror que eu sentia diante da vida que se revelava para mim, que eu julgava ser incapaz de abraçar. Uma outra pessoa era agora o centro do mundo, eu e minhas vontades ficamos de repente jogadas de lado, e eu não sabia mais dizer se haveria espaço para o que antes era um casal.

Custou tempo entender que algumas perguntas não têm resposta. Ou pelo menos não uma resposta correta. Ao longo dos anos de amor, angústia, dor e alegria, fui aprendendo que a minha maternidade era única, que esse acontecimento banal pelo qual a vida segue acontecendo e a humanidade se perpetua pode ser um milagre, uma maldição, a salvação ou o fim. Que eu tenho sorte de que, para mim, tenha sido bonito de um jeito singular.

É curioso como essa experiência, tão linda, intensa, dolorosa, custosa, longa (infinita, minha mãe poderia dizer) continua a se repetir por todos os cantos do planeta. Mulheres solteiras, casadas, jovens, mais velhas, de primeira viagem, de segunda, de terceira… seguem se multiplicando a despeito dos peitos empedrados, dos mamilos feridos, dos homens que vão embora, dos homens que ficam, dos filhos doentes, dos filhos mal-agradecidos, dos abortos espontâneos, das más-formações fetais, do mundo em guerra, do planeta em chamas, das geleiras derretendo, do gás carbônico nos sufocando, da fome, da seca, da dengue, da Covid, do câncer. Seguimos nos reproduzindo porque, enquanto houver vida, haverá esperança, e a vida depende de nós, mulheres e mães do mundo. A natureza conta com a nossa teimosia.

XII

Quando leio um livro nunca penso em quem o escreveu, é como se eu mesma o estivesse escrevendo. […] Acho que os escritores são amanuenses devotos e solícitos que traçam em preto e branco de acordo com uma ordem própria mais ou menos rigorosa, mas que a verdadeira escrita, a que realmente importa, é obra dos leitores.
Elena Ferrante

Clarice Lispector costumava dizer que escrevia para salvar a própria vida. Marguerite Duras dizia que escrevia para alcançar o desconhecido. Eu, como mulher que escreve, especulo sobre as questões que estiveram rondando cada uma das autoras dos livros que me carregaram para dentro de reflexões intermináveis. Entender o desconhecido, iluminar o sombrio, expurgar demônios, ver além da própria experiência? Em Escrever, Duras me traz algumas pistas.

Pois um livro é o desconhecido, é a noite, é fechado, é isso. É o livro que avança, que cresce, que avança rumo ao seu próprio destino e o de seu autor. […] Um livro aberto é também a noite. […] Escrever assim mesmo, apesar do desespero. Não: com o desespero.

O desespero contido em cada uma das histórias que me carregaram existe e é palpável. É de uma multidão de mulheres, mães, perdidas, sozinhas, apaixonadas, tristes, exultantes, incompletas, imperfeitas. Contraditoriamente, conforta a nós, leitoras, porque nos leva além. Afinal, nós também lemos para existir, lemos porque a vida não basta.