Ala Rosetto, longa esquina de verão, armadura de borboletas: Minha mãe veio ao céu me visitar.
Héctor Viel Temperley1
As coisas que tenho me pesam. Há objetos que acumulo por gosto, necessidade ou herança e que invadem os metros quadrados a que tenho o atrevimento de chamar de meus. Não é uma revelação new age nem uma diatribe anticapitalista dizer que, em alguns momentos, sinto que as coisas se apoderam de mim: o baú amarelo de Olinalá entupido de fotos velhas, o tinteiro de vidro, a louça branca de minha avó, guardada há anos em caixas de papelão. Tudo marcado pela doença de seus donos anteriores, com tumores nos pulmões e no pâncreas: quero conservar esses objetos, mas não quero voltar a vê-los.
A edição da Aguilar de Cervantes, revestida em couro, que mamãe me lia à noite. O cinzeiro que meu avô — fumante irremissível — levava na mala quando entrou no hospital pela última vez. A foto de quando completei sete anos e papai nos levou para comer no restaurante San Ángel Inn: eu com meu vestido branco e o cabelo até a cintura, mamãe de casaco com reforço nos cotovelos, meu irmão Pedro com a adolescência inteira a envolvê-lo em formato de blazer azul-marinho com botões dourados. Certamente meus pais tinham bebido e entrado naquela alegria; nos deram permissão para comer uma ilha flutuante e correr pelos jardins, até a fonte, para ir atrás de uns gatos.
23 de abril de 1991. Foi realmente um bom dia? Nesse simulacro de papel e luz, foi.
Em 2007, tivemos de nos desfazer de uma casa e da vida que a habitava. Não é estranho que as coisas sobrevivam a seus donos? Eu não deveria manter arquivos alheios, louças de lares que desapareceram, fotografias de outros tempos que alguém recortou seguindo o capricho de sua própria recordação. Mutilar fotos para lapidar a memória é uma tradição familiar: mamãe, artesã da lembrança, deixou centenas de fotos decapitadas. Também ficaram mais de trinta cadernos forrados com tecido e datados rigorosamente com letra manuscrita no início de cada entrada. O que fazer com a coleção de diários que contém a vida de sua mãe morta? Como contar uma história da qual você conhece apenas o final?
Ser a caçula entre os irmãos significa que tudo aconteceu antes de você: os inícios foram perdidos, mas você estará presente em todos os finais.
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Em 1931, Walter Benjamin escreveu “Desempacotando minha biblioteca”, em que recorda como adquiriu seus livros mais queridos. Gosto de imaginá-lo segurando cada volume, cuidadoso e obsessivo como seguramente era, pensando no lugar que este deveria ocupar na estante. Toda paixão beira o caótico, mas a paixão do colecionador beira o caos da memória.2
Existem tantas maneiras de ordenar uma biblioteca quanto pessoas que têm uma biblioteca. Susan Sontag, por exemplo, acomodava seus livros cronologicamente. Pensava que o autor se sentiria mais à vontade entre seus contemporâneos, e lhe afligiria, disse em uma entrevista, ver Pynchon junto a Platão. Carlos Monsiváis, por outro lado, acumulou tantos livros durante sua vida que, em seus últimos meses, simplesmente deixou de ordená-los, e os exemplares começaram a formar um labirinto doméstico: era preciso caminhar com cuidado e olhando para baixo para não tropeçar nos corredores estreitos formados pelas pilhas de papel. Por sua vez, Montaigne olhou para cima e anotou suas frases favoritas nas paredes da torre em que escrevia. Uma biblioteca reduzida.
Desmontar a biblioteca de mamãe foi a verdadeira cremação de seu corpo. Compramos adesivos coloridos e nos reunimos durante várias tardes para colá-los nas lombadas dos livros que queríamos conservar. Depois convidamos vários amigos a escolher alguma obra como lembrança, com a condição de que sob motivo algum devolvessem aquilo que encontrassem entre suas páginas: a vida privada de cada livro deveria permanecer intacta. Foi então que acrescentei à minha biblioteca uma centena de livros repletos de anotações à margem, os quais tenho tido de embalar e desembalar tantas vezes nos últimos dez anos que acabaram se tornando uma âncora entre as mudanças. Por meio deles, noto minhas próprias transformações: uma biblioteca é uma coleção, e colecionar é estar sempre em construção. Ordená-la é uma questão pessoal, diz Alberto Manguel, porque a posse material é às vezes sinônimo de apropriação intelectual: a tal ponto nos identificamos com os livros que por vezes parece que, para conhecê-los por dentro, bastaria pousarmos a mão sobre sua capa e esperar o tempo necessário.
Há distintas maneiras de amar os livros. Alguns se aproximam deles com amor cortês, como se cuidar deles implicasse conservá-los como novos, alheios à passagem do tempo. Quando muito, deixam um asterisco pequeno, sempre a lápis, ou marcam a página com um papelzinho. Já minha família professa pelos livros um amor carnal. Sublinhamos e anotamos com a caneta que estiver à mão, traçamos colchetes, parênteses, flechas, sinais de exclamação e rabiscos, improvisamos marcadores com notas fiscais do supermercado ou com a conta do gás. Não somos os únicos: Alfonso Reyes conta que Antonio Machado mastigava os livros até que ficassem reduzidos a uma borboleta de asas arredondadas. São variações do amor.
Nos anos que têm estado comigo, tenho encontrado nos livros de mamãe evidência de várias de suas facetas como leitora. Conservo, por exemplo, Infância em Berlim por volta de 1900, de Walter Benjamin, exemplar de uma antiga coleção da Alfaguara: pequenos livros encapados em cinza e roxo, com grandes letras verdes na capa. Diz o ensaio “Jogo de letras”:
Jamais poderemos resgatar totalmente o que esquecemos. Talvez seja melhor assim. O choque que recuperá-lo produziria seria tão destrutivo que, de imediato, deveríamos deixar de compreender nossa saudade. Compreendemos isso de outro modo, e tanto melhor, quanto mais profundamente repousa em nós o esquecido.
Páginas enlaçadas a outras páginas pela imaginação: separado com uma bandeirinha, o fragmento tem uma anotação à margem, com as seguintes palavras de Nietzsche: Dei nome à minha dor e a chamei de “cão”. Pode ser que seja impossível conhecer a fundo os mecanismos que a levaram de um ponto a outro, mas compreendi algo quando, anos depois, completei sua nota com uma linha de Mi vida con la perra, de Francisco Hernández: Touro: a felicidade é um paletó que fica grande em mim. Também se uniram sutilmente duas de minhas escritoras favoritas quando, na página 130 de A descoberta do mundo, Lispector escreve: Um nome para o que eu sou, importa muito pouco. Importa o que eu gostaria de ser. Ao lado, um verso de Alejandra Pizarnik: Como quando se abre uma flor e revela o coração que não tem.
Sua cópia das Cartas de Abelardo e Heloísa está assinada em tinta azul na primeira página. No pé, em letra menor: 1984 (o ano do divórcio). Com ele, ou sem ele, minha mãe refletiu sobre a natureza do amor e do matrimônio, sublinhando estas palavras de Abelardo:
Heloísa me fazia ver o quão perigoso seria levá-la comigo a Paris e argumentava que o título de amiga seria mais apreciado por ela que o de esposa, e mais honrado para mim. Queria me conservar pelo amor dado livremente, não me acorrentar com os laços do matrimônio, e dizia que nossas separações momentâneas tornariam os encontros mais doces.
Também tenho os 23 volumes de suas obras completas de Freud, o número xxi com um selinho de veludo em formato de tigre colado na capa, certamente por mim. Na página 83, ao lado da frase O programa que nos impõe o princípio do prazer, o de ser felizes, é irrealizável, uma nota dela: resta a beleza.
Um enigma: Por que ela dobrou o canto da página que contém a entrada dedicada a Hórus, do Dicionário dos símbolos, de Jean Chevalier? Não escreveu nada à margem, mas sublinhou uma oração com marca-texto amarelo (ou seja, com decisão): Ele é visto sempre combatendo, a fim de salvaguardar um equilíbrio entre forças adversas e para fazer triunfar as forças da luz.
Fazer triunfar as forças da luz. Mais que em seus livros, foi em suas notas à margem que minha mãe deixou seu legado mais valioso: uma forma de encontrar-me com ela.
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Os atos de ler e escrever estão tão intimamente vinculados que sublinhar e anotar livros funcionam às vezes como substitutos da própria escrita. Em “La vanidad de subrayar”, Fabio Morábito menciona um amigo seu, que não publicava porque não suportaria ser sublinhado. Temia que o critério equivocado do leitor – em sua faceta minúscula, a marginália é a forma mais democrática de crítica literária – deixasse de fora partes de seu livro que lhe pareciam fundamentais. Queria escrever um livro sublinhável da primeira à última palavra.
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Houve, em algum momento, em minha casa, um livro irmão de Infância em Berlim por volta de 1900: seu título era Rua de mão única, e reunia textos e aforismos, breves passagens inclassificáveis, publicados por Benjamin em 1928. Mamãe o emprestou e nunca voltei a vê-lo. Penso nele com frequência, mas não quis comprar outra edição porque guardo a esperança, absurda como todas, de que retorne a minhas mãos. Sem sabê-lo, ela deu um livro que me pertencia. Quantas pessoas terão cruzado com ele até agora?
Meu amigo Julián Meza dizia que o número ideal de comensais em uma mesa, em termos de conversação, é três: com dois, o diálogo se estanca; e com quatro, se bifurca. Se ler é pensar com o cérebro de outro, então ler livros anotados é engatar uma conversa a três, a mesa perfeita. Diante disso, não é estranho pensar que, até meados do século xix, fosse costume escrever nos livros antes de presenteá-los. As notas à margem feitas por Coleridge, por exemplo, gozaram de tal fama que seus amigos lhe pediam que marcasse seus livros antes de lê-los. Diz Billy Collins, em “Marginalia”:
Até os monges irlandeses em seus frios scriptoria
rabiscaram às margens dos Evangelhos
breves notas sobre as penas de copiar
um pássaro que cantava perto da janela
ou a luz do sol que iluminava sua página
As anotações à margem são, portanto, viagens até um momento no futuro em que alguém, recostado em outra poltrona, sentado a uma janela na qual canta um pássaro distinto, terá o livro entre as mãos e transformará o monólogo em diálogo. Ler os livros que mamãe anotou é falar com ela, e a conversa é um dos modos do amor.
Foi assim que vencemos a morte.
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O último livro lido por ela se chama La escritora vive aquí e tem como capa a fotografia de uma casa branca de teto triangular, que eu imaginava como um bom lugar para me esconder do horror daqueles dias. Não me atrevi a abri-lo. Nessa altura, o veneno da quimioterapia havia transformado sua caligrafia impecável em um punhado de aranhas patudas que prefiro não voltar a ver. Pelo que leio na internet, trata-se de uma viagem pelas casas e pelos objetos de Marguerite Yourcenar, Colette, Alexandra David-Néel, Karen Blixen e Virginia Woolf. A frase não me sai da cabeça: Trata-se de uma viagem.
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Porchia escreveu que o que dizem as palavras não dura, duram as palavras. Duram as palavras: minha mãe vive aqui.
- [Nota do tradutor] “Pabellón Rosetto, larga esquina de verano, armadura de mariposas: Mi madre vino al cielo a visitarme”. Estes versos, do argentino Héctor Viel Temperley (1933-1987), estão no livro Hospital Británico e são comentados pelo autor na seguinte entrevista: tinyurl.com/temperleyentrevista. ↩︎
- [N. T.] A tradução de todas as citações foi feita a partir dos fragmentos citados por Isabel Zapata no texto em espanhol. ↩︎