Transcorridos mais de três meses, quase quatro, ainda não se entendiam. A vida seguia um inferno e, sem se dar conta, o novo ser se apropriava do seu corpo. Seria mãe.
Numa tarde, uma tarde de primavera, ela dirigia por uma avenida imensa, lotada de carros, tantos que seu olhar não alcançava o começo da fila, pessoas apressadas caminhando em todas as direções, vozes, buzinas e gás carbono.
O passageiro do lado, aquele que deveria cuidar, agredia: com gestos, tons e caras. Dizia vire, siga, pare, vai bater. Você é burra? Ligava o rádio, mudava de estação a cada segundo, aumentava o som. Gritava novamente, rápido, à direita, devagar. Puta que pariu. Na parada do sinal, o passageiro abre rapidamente a porta, desce, bate a porta e some na multidão.
Ela fica na cidade desconhecida, na trilha desordenada. Não chora, o coração não aperta, não se desespera. Inspira e expira profundamente, afrouxa o acelerador e decide seguir, almeja alcançar o horizonte. Não escuta mais os barulhos irritantes. No rádio toca Gil e ela canta, canta alto “vida, vida é assim, vida, vida é assim, vida, vida humana”.
Vê árvores floridas, as flores são amarelas, pensa se seriam ipês. Desconfia ouvir passarinhos e descobre pessoas se cumprimentando festivamente nas esquinas. Algumas dão gargalhadas, outras tomam sorvete.
Compreende então que, se quiser, poderá acolher a vontade de parar para um café. Ela havia se esquecido de que, no mundo, há prazer, beleza, passarinhos e flores amarelas.
O passageiro desceu e deu espaço para a solidão. Não a solidão do abandono do outro ou de si, mas aquela de que fala Ana Suy: a descoberta de que, quando o outro vai, restamos nós com nós mesmas.
Diante da morte do amor inventado, ela abraçou a vida em seu ventre e fez planos, muitos planos.
Nasceu.