Abril de 2020 foi o último mês da minha vida. Eu tinha acabado de completar vinte anos, de me entender mulher, de me reconhecer no espelho, de decidir que queria fazer faculdade, de me descobrir capaz de ser corajosa. Num segundo eu era gigante, noutro eu era menor que dois riscos rosados em um palito mergulhado num pote de urina. Pode-se morrer e nascer no meio segundo que essas linhas demoram para aparecer.
Sendo mulher e vivendo o início de uma pandemia, o medo era um sentimento familiar, mas ele ganhou outras formas, e junto dele vieram a solidão e a percepção de que tudo que eu havia imaginado e previsto tinha sido revirado.
Tentar entender como ser mãe, e o que exatamente significa ser uma mãe “boa”, era (ainda é) um pensamento insuportável, que se enviesava a cada palpite de uma tia, avó e da minha própria mãe. Eu venho de uma família de mulheres abandonadas e injustiçadas: pelos homens, pelas instituições, pela família. Isso causou uma reação em cadeia de ódio, críticas e violências de todos os tipos. Eu queria ser a última dessa cadeia, e achava que a única forma de quebrá-la seria nunca sendo mãe. Então veio Luiza.
Luiza nasceu em 16 de dezembro de 2020, depois de um parto de cesárea que eu não queria e não precisava. A possibilidade de ter um parto normal me foi arrancada por um médico sem paciência que se aproveitou de um momento de fragilidade. A enfermeira, também impaciente e cansada, não deixou que eu amamentasse. Quando o colostro saiu dos meus seios para a boca da minha filha, a enfermeira a tirou de mim e disse a mim e à minha companheira que eu não deveria insistir, que meu leite era fraco, que eu poderia matar minha bebê de fome. As primeiras horas de vida da Luiza foram de muito medo. É só isso que eu lembro de sentir.
Pesquisei muito, e consegui amamentar e amamento até hoje, quando ela está prestes a completar três anos. Eu consegui viver o primeiro ano de vida da minha filha com plenitude. Ela mamou e experimentou o mundo com as mãos: da terra à banana-caturra, primeiro alimento que comeu. Luiza tomou todas as vacinas, não ingeriu açúcar ou sal no primeiro ano, não teve contato com telas. Muitas vezes eu me senti a mãe mais exemplar, e de alguma forma era tudo mais simples naquele momento, o cordão umbilical ainda parecia conectado, nós éramos quase que uma só. Duas semanas depois de completar um ano, Luiza deu seus primeiros passos, e desde então ela só anda para frente.
A partir do primeiro ano de vida da minha filha, eu entendi que havia mais, e que ela seria muito mais que a minha bebê de bochechas e olhos grandes. Essa sensação foi se tornando agridoce com o tempo. Sinto que a independência que ela tem é um reflexo da segurança que eu lhe dei, e ao mesmo tempo tenho medo de não conseguir me adaptar ao fato de que ela está crescendo, de não saber mais ser a mãe dela.
Hoje ela testa todos os limites: não me escuta sempre, fazemos combinados, explico o porquê de cada “não”, mas ela esquece, não quer, ou quer porque quer, grita, chora, quebra, corre para o meio da rua, faz birra, brinca com o perigo a todo momento. Quem sou eu nessas horas em que estou tão cansada que não consigo conter o grito?
Com muito custo aprendi que minha filha é um ser humano tão complexo e imprevisível como qualquer outro, e nem sempre está disposta a ouvir – assim como eu também não estou. Às vezes, quando acordo no meio da noite, flagro-a babando em seu colchão e sinto culpa – tudo parece tão mais fácil no silêncio de seu sono, até seu aspecto muda, de criança para bebê, e eu fico com raiva de mim mesma por qualquer momento passado sem pensar na melhor forma de lidar com suas crises.
Nossas tramas se entrelaçam para sempre, meu amor por ela é incondicional – mas e o dela? Me pergunto o tempo todo se vou ser uma pessoa que ela vai querer ter por perto, e nisso penso: que tipo de pessoa eu sou? Que espaço tem a maternidade no desenvolver da vida (da dela e da minha)? É preciso encarar o medo mais uma (e mais uma e mais uma) vez.
Durante o maternar me tornei anônima de mim mesma. Mas agora, com a individualidade da minha filha se agigantando, não pude mais evitar olhar para a minha própria existência.
A maternidade não surgiu como mágica junto daqueles traços do teste de gravidez, tampouco nasceu assim que minha filha saiu da minha barriga: ela se constrói a todo momento, se reinventa a cada nova fase, precisa se adaptar a uma nova linguagem, precisa lutar contra heranças sociais e particulares. Nessa luta, me esforço para me lembrar o que significa estar no mundo, para além de ser filha e de ser mãe.
Agora, com a Luiza descabelada, com seu hálito de leite dizendo perto do meu rosto que aguarda “sua vez” de “trabalhar” no computador, enquanto também bate no teclado e segura minhas mãos, penso com calma que esse cansaço é também uma alegria. Entendo agora que muito do que sei sobre a importância da minha individualidade se deve à gritante individualidade dela.