[N. 140 | 2025]

A analfabeta [fragmento]

Ágota Kristóf

A memória

Fico sabendo pelos jornais e pela televisão que uma criança turca de 10 anos morreu de frio e de exaustão enquanto tentava atravessar clandestinamente a fronteira suíça junto a seus pais. Os “coiotes” os deixaram perto da fronteira. Eles só tinham que andar sempre em frente em linha reta até chegarem ao primeiro vilarejo suíço. Caminharam por longas horas pelas montanhas e florestas. Fazia frio. Lá pelo fim, o pai colocou a criança no ombro. Mas já era tarde demais. Quando chegaram ao vilarejo, a criança estava morta de cansaço, de frio e de exaustão.

Minha primeira reação é aquela de qualquer suíço: “Mas como as pessoas se atrevem a se aventurar em situações assim com crianças? Uma irresponsabilidade desse tipo é inadmissível”. O contragolpe é violento e imediato. Um vento frio de fim de novembro insinua-se no meu quarto bem aquecido, e a voz da memória se ergue em mim com perplexidade: “Como? Você já se esqueceu de tudo? Você fez a mesma coisa, exatamente a mesma coisa. E a criança que você carregou era quase um recém-nascido.”

Sim, eu me lembro.

Estou com 21 anos. Casada faz dois anos, e tenho uma menina de quatro meses. Atravessamos a fronteira entre a Hungria e a Áustria numa tarde de novembro, precedidas por um “coiote”. Ele se chama Joseph, o conheço bem.

Formamos um grupo composto por uma dezena de pessoas, entre as quais algumas crianças. Minha filhinha dorme nos braços de seu pai, eu carrego duas bolsas. Numa bolsa estão as mamadeiras, algumas fraldas, algumas mudas de roupa para a pequena; na outra bolsa, dicionários. Caminhamos em silêncio atrás de Joseph por mais ou menos uma hora. A escuridão é quase total. Às vezes, feixes luminosos e faróis iluminam tudo, ouvimos estalidos, disparos, logo recaímos no silêncio e na escuridão.

No limiar do bosque, Joseph para e nos diz:

— Agora vocês estão na Áustria. Só precisam seguir em frente sempre em linha reta. O vilarejo não fica longe.

Dou um abraço em Joseph. Entregamos a ele todo o dinheiro que temos, até porque esse dinheiro não teria valor nenhum na Áustria.

Caminhamos pela floresta. Por muito tempo. Tempo demais. Os galhos ferem nossos rostos, caímos nos buracos, folhas mortas nos encharcam os sapatos, torcemos os tornozelos nas raízes. Alguém liga uma lâmpada de bolso, mas serve somente para iluminar pequenos círculos, e árvores, árvores sempre. Contudo, já deveríamos estar fora da floresta. Temos a impressão de andar em círculos.

Uma criança diz:

— Estou com medo. Quero voltar para casa. Quero deitar na minha cama.

Outra criança chora. Uma mulher diz:

— Estamos perdidos.

Um jovem diz:

— Vamos parar. Se continuarmos assim, acabaremos voltando para a Hungria, se é que já não voltamos. Não se mexam. Vou lá ver.

Sabemos todos o que isso significa, voltar para a Hungria: a prisão, por termos cruzado de forma ilegal a fronteira, ou mesmo sermos alvejados pelos guardas de fronteira russos, bêbados.

O jovem sobe numa árvore. Quando volta, diz:
— Entendi onde estamos. Me orientei pelas luzes. Sigam-me.

Nós o seguimos. Pouco depois, a floresta se dissipa e começamos finalmente a caminhar numa verdadeira trilha, sem galhos, sem buracos, sem raízes.

Subitamente somos iluminados por uma luz violenta, e uma voz diz:

— Parem!

Alguém de nós diz em alemão:

— Somos refugiados.

Os guardas de fronteira austríacos respondem, rindo:

— Já sabíamos disso. Venham conosco.

Eles nos levam até a praça do vilarejo, onde há uma multidão de refugiados. Chega o prefeito:

— Deem um passo adiante aqueles que estão com crianças.

Somos hospedados por uma família de camponeses. São muito cordiais. Se ocupam da pequena, nos dão comida, nos dão uma cama.

O curioso são as poucas lembranças que tenho disso tudo. Como se tudo tivesse acontecido num sonho, ou numa outra vida. Como se minha memória se recusasse a lembrar o momento em que perdi uma grande parte de minha vida.

Deixei na Hungria o meu diário com a escrita secreta, assim como meus primeiros poemas. Deixei lá meus irmãos, meus pais, sem avisá-los, sem me despedir deles, sem sequer dizer até logo. Mas principalmente, naquele dia, naquele dia de final de novembro de 1956, perdi definitivamente meu pertencimento a um povo.