Sou contra a secreta força dos filhos-tiranos nestes tempos que correm, velozes e desaforados como eles – sobre minha cabeça e pelo corredor. Aos berros! Silêncio, imploro, dissimulando minha irritação: não há quem trabalhe no meio de uma bagunça dessas. E não é só contra esses filhos prepotentes que escrevo, mas também contra seus progenitores. Contra os confortáveis cúmplices do patriarcado que não assumiram sua justa metade na histórica gesta da procriação. Contra a nova espécie de pais dispostos a colaborar dentro e fora de casa, mas que parecem incapazes de pronunciar um educativo “acabou!”, um certeiro’ “chega!” para seus filhos rebeldes; sem se abalar, permitem que eles ignorem a paz de seus desesperados vizinhos.
E por que não acrescentar à minha ladainha que sou contra muitas mães. Não todas. Apenas contra as que jogaram a toalha e renunciaram angelicamente a todas as suas outras aspirações. Contra as que aceitaram procriar sem pedir nada em troca, sem exigir o apoio do marido-pai ou do Estado. Contra as que engravidaram acreditando que apanhavam um desavisado, e se viram capturadas pelo filho, sozinhas com ele. Contra as que, numa reciclagem atual da mãe-empregada, tornaram-se mães-totais e supermães dispostas a arcar com casa, profissão e filhos sobre seus ombros, sem reclamar. E não me esqueço das mães prepotentes que, além de engendrá-los (e se dar importância fazendo rodar o carrinho sobre nossos pés), nos obrigam a assumir seus filhos como nossos.
Estou muito contrariada, é verdade, mas não é à toa.
Observo com alarme que a questão dos filhos não prosperou.
Muito pelo contrário, ela experimenta um grave retrocesso.
O que aconteceu? Nós, mulheres, não tínhamos nos liberado da condenação ou da cadeia dos filhos que a sociedade nos impunha? Não tínhamos deixado de procriar com tanto afinco? Não conseguimos estudar carreiras e outros ofícios que nos tornaram independentes? Não conseguimos sair e entrar e sair do cerco doméstico, deixando para trás as culpas? Não tínhamos obtido dos progenitores que assumissem uma paternidade consequente? Não deixamos de tolerar infelizes arranjos de casal? Não é por acaso verdade que são as mulheres que, na sua esmagadora maioria, pedem agora o divórcio e o obtêm? Não conseguimos a guarda compartilhada? Não conseguimos decidir como criar nossos filhos? Não colocamos limites para eles? Quando foi que se tornaram vitimários impunes nossos e de seus pais? O que os transformou nos invencíveis ditadores que agora são? Em clientes aos quais é preciso satisfazer com uma multidão de presentes? Em anões executores de um imperativo de serviço doméstico que continua mais vivo e ativo do que nunca?
A tantas perguntas acrescento uma última.
Não tínhamos concluído que o feminismo já estava démodé, que podíamos esquecer seus lemas porque tínhamos vencido a luta e podíamos nos dedicar a desfrutar do que atingimos?
Crasso erro, senhoras e senhoritas.
Prestem atenção: a cada êxito feminista se seguiu um retrocesso, a cada golpe feminino um contragolpe social destinado a domar os impulsos centrífugos da liberação.
O velho ideal do dever-ser-da-mulher não bate em retirada de modo tão fácil, solapadamente retoma ou torna a se reproduzir tomando novas formas: sua encarnação contemporânea agita os pés entre fraldas e berra sem descanso junto a nós.
Mantenhamos ainda em suspenso o pressentimento que anima meus dedos beligerantes sobre o teclado e imaginemos como a máquina da fertilidade põe em sincronia o relógio biológico e os alarmes sociais para ativar em nós a pulsão de procriar. Não foi à toa que as velhas feministas erigiram a ideia, sem dúvida revolucionária, de que a maternidade estava menos sob influência dos hormônios – o “corpo como destino” defendido por dom Sigmund Freud – do que da sua construção cultural.
Quem sabe para divergir um pouco das posturas antitéticas, defenderei uma hipótese que as combina. E já que ninguém me impede – apesar dos pesares, sou eu quem assino esta diatribe –, lanço minha conjetura como certa: no ter-filhos não persiste só o chamado biológico (o proverbial relógio fazendo saltar seu insuportável tique-taque), mas a ele se acrescenta o insistente alarme do ditado social: somam-se os hormônios e os discursos da reprodução, fazendo com que ao mandado materno se torne difícil se esquivar. É como se, no fundo, para além de nós mesmas, de nossa possível resistência, estivesse soando um disco demográfico arranhado, exigindo ou estimulando, a cada volta, de maneira estranhamente compassada, que continuemos fazendo filhos.
Esse duplo mecanismo explica a ininterrupta proeza de engendrar, parir, ninar e para sempre estar ligada a um filho ou a vários (ter só um é malvisto). A complexa maquinaria entra em movimento na infância, com a boneca de pano, com os apetrechos domésticos em sua versão brinquedo-de-plástico, com as narrativas que enaltecem de maneira precoce a procriação. E a boneca nos braços não é nada inocente: “Ao dar uma boneca de presente a uma menina se está dando, por acréscimo, sua maternidade”, adverte a escritora chilena Diamela Eltit. “Ao dar de presente a um menino um carrinho o que se dá é sua capacidade de dirigir. A capacidade de continuar um caminho e encabeçá-lo.” Quem não puder dirigir, deverá ser dirigido, e as mulheres são empurradas a seu destino materno. Tão poderosa (tão normalizada, diriam as senhoras acadêmicas) é essa imagem da menina mexendo a panela com sua boneca nos braços que algumas mulheres adultas não conseguem sequer se questionar se desejam ou não uma boneca de carne e osso.1 Nem passa pela cabeça de muitas essa pergunta. Outras a evitam porque intuem que poderiam concluir que esse é um querer emprestado ou imposto, ao qual foram conduzidas. Um querer alheio, mas invencível.
E não digo que seja fácil se abster.
A partir dos vinte, a pergunta materna lançada a toda mulher (raramente a um homem) não é se vai ter filhos ou não, porque um “não” seria inconcebível, mas quando pensa em tê-los. E se o relógio biológico que antes soava ao vinte e tantos falhou e essa mulher passa dos trinta, a fatídica pergunta adquire um volume categórico: ativa-se o despertador social tentando fixar uma data. À medida que o corpo-sem-filhos de uma mulher avança imperturbável em direção aos trinta e cinco, os comentários se tomam sem dúvida impertinentes. Caem como martelos.
E então?
Quando você vai se decidir?
Como assim “não”?
É um egoísmo não ter filhos.
Nada pior do que a vaidade numa mulher.
Você logo vai mudar de opinião.
Entre o pressionador quando e o vai e o ter e o filhos, o fantasma de um temor enraizado. Que uma mulher fique para sempre incompleta (como se os filhos fossem uma extensão do seu corpo, um pedaço de sua identidade, o modo de aperfeiçoar esse ser informe e deficitário que seria a mulher). Mas há outro pensamento ainda mais angustiante: que essa mulher tenha meditado um convincente por-que-não-ter-filhos ou que esteja respondendo a seu desejo nulo de tê-los. Que esteja satisfeita e inclusive celebre a ideia de que nem toda mulher deve ser mãe e que ela se declare sócia permanente desse clube.
Esse raciocínio não parece socialmente aceitável, por mais que careça de lógica e seja evidente que nosso sobrecarregado planeta agradeceria uma míngua na fertilidade. Mas não pensa assim nem agradece esse pensamento à legião das mães-militantes. Elas (não todas, só as que militam, que já são bastantes), elas, repito, costumam reagir com virulência diante da negativa. Sentem-se julgadas, algumas, sobretudo aquelas que em mais de uma ocasião se questionaram em segredo o que ter filhos significava para elas e o que eles ainda impedem; essas ou aquelas devem ter feito um enorme esforço de racionalização para aceitar suas vidas pós-filhos. Enfrentar a aprazível ou exultante certeza das mulheres-sem-filhos representa uma contrariedade para as mães que duvidam ou se arrependem sem se atrever a dizê-lo (a dizê-lo a si mesmas e aos outros). Faz rebentar uma resignação arduamente construída.
Por isso é crucial importunar as sem-filhos. Por isso: assinalá-las, questioná-las, interrogá-las, censurá-las. Por isso repreendê-las, mexer a cabeça de um lado para o outro e reiterar gastas repreensões somadas a um sorriso de suficiência.
Você vai se arrepender quando for tarde demais, querida.
E talvez por isso a língua castelhana ainda não tenha se aberto para uma palavra que descreve sucintamente seu desobediente desejo. Não que o termo não exista: childfree apareceu nos anos 1970 no mundo anglo-saxão, onde até então as poucas mulheres-sem-filhos diziam “não posso”, em vez de dizer, como diriam a partir de então, mais numerosas, mais livres, mais legitimamente: “não quero, nem agora nem nunca”. O matiz mudou, childfree (livre–de-filhos) distinguia uma não-maternidade escolhida ou assumida de outra situação, sofrida, carente, estigmatizada, de não ter tido filhos porque não foi possível: childless.2
E a mulher-sem-filhos, a ainda-sem, a que pensou a si mesma mãe-em-casal, mas ainda não casou, a profissional que pensou nisso, mas não tem tempo, a que dá de ombros quando lhe perguntam e raramente responde, ela fica meditando, intrigada e vagamente assustada pela ideia de que o tempo está vindo para cima dela: a antiquada esteira do trem que já está partindo, deixando-a sozinha na estação com um coro de insistentes sussurros que se unem ao seu redor, empurrando-a a tomar a decisão. São as vozes das mulheres-mães e das sogras que desejam ser avós, ou das avós que sonham em ser bisas, ou tataravós, na cantata da procriação. As vozes de tantas que temem ver truncada a gesta reprodutiva, que buscam confirmar seu sacrifício passado no corpo presente da sem-filhos. Umas vozes que frequentemente se misturam com as insistentes e até vociferantes palavras de ordem provenientes das altas esferas de poder.
Assim é: um coro e tanto de sopranos, barítonos, tenores, baixos: o vibrato potente do patriarcado. Erguem-se precisamente agora quando, pela primeira vez na história, reproduzir-se não pode ser dado como óbvio; agora que começa a se falar da revolução-dos-sem-filhos.
É isso o que pregoam, todas juntas, as vozes. Com tom e com som.
Filhos! O vetusto mas enérgico chamado da religião (não importa o credo, o evangelho da procriação é sempre o mesmo) promulgando, como ventríloquo de alguma divindade masculina, o crescer, o multiplicar-se, o encher a terra de sucessores e seguidores, proibindo, em latim ou nas línguas que julguem necessárias, e de costas a todo raciocínio, qualquer método seguro de anticoncepção.
Filhos, filhos! O sistema capitalista finge outra crise produtiva e exagera um asfixiado suspiro exigindo dos corpos femininos que façam sua gestão privada, privatizada, desassistida, enquanto o Estado dá sinais de um iminente colapso.
Filhos! Repetem sem cautela os porta-vozes de ideologias reacionárias. Pedem filhos que sem constrangimento mandarão às catacumbas se saírem rebeldes e, é claro, pedem filhas pouco voluntariosas e extremamente férteis que colaborem com a tradição da vida-a-qualquer-preço, incluído, não esqueçamos, o de suas próprias existências.
- A propósito de bonecas, permitam-me este aparte. À maternidade natural e à assistida produção de crianças-in-vitro, somou-se toda uma indústria de recém-nascidos de silicone: suaves e moles e idênticos aos de carne e osso. A demanda desses alucinantes “bebês de borracha”, que costumavam ser receitados, como terapia, a mães que tinham perdido seus filhos, aumentou num espaço definitivamente afastado do imperativo biológico: os asilos geriátricos.
- Alguns continuam usando este último, mas, conscientes do matiz vitimista do childless, acrescentam um by choice, e então fica assim: sem-filhos-por–opção.