Não é assim que eu sonhava escrever. Os livros sempre foram a janela por onde eu escapava desta mãe que agora, enquanto escrevo com o sangue pingando, me espreita atrás da porta. Desde criança, quando abro um livro não estou mais aqui. Não é uma metáfora para mim. Talvez o chefe com cauda de lagarto tenha razão. Eu não sei fazer metáforas porque não compreendo metáforas. Para mim tudo é literal. Como meus braços bordados pelas cicatrizes de todas as tentativas de me separar do corpo de minha mãe. Para mim nunca houve um cordão umbilical que pudesse ser cortado. Só a dor de estar confundida com o corpo da mãe, de ser carne da mãe. Este ritual que agora pinga de mim como um fracasso. Mais um. Eu corto corto corto e ainda não sei que existo. Continuo sem corpo. E ela lá fora, com medo que eu vá embora, fingindo desconhecer que não posso partir. Nunca pude. Porque arrasto comigo o corpo dela, que me engolfa e engole.
Mas divago.
Sempre tive medo de escrever. Da hora de tornar meu sangue símbolo do sangue. Tinha medo por causa da dor desconhecida que talvez viesse, que eu quase podia tocar como certeza. Ainda que eu sangre com sangue, este ritual eu conheço. Ele faz de mim o pouco que tenho de mim. É uma constituição. Me constituo eu pelos cortes em mim. As palavras, não. O que elas farão de mim?
Me matarão, as palavras? A dúvida que me envolve como um cobertor de medo enquanto minha mãe me vigia atrás da porta é se há vida depois das palavras. Ou há vida sem sangue. Esta é toda a minha aposta agora. Escrevo na esperança de que as palavras me libertem do sangue. Do corpo da mãe. Mas e se não existir eu além dessa mistura de carnes de mãe e de filha? Me sinto deslizar para o buraco negro do corpo dela, onde sou cega e minha faca esgrima no ar.
Ouço sua respiração difícil atrás da porta. Sei que ela quer que eu a ouça. Será que ela sabe que eu a estou matando? Não como das outras vezes, mas da forma definitiva? Uma morte além da morte?
Mas divago.
O que me perturba agora é menos denso. Não escrevo como desejaria. As frases que emergem de mim não têm qualidade. Será que contêm pelo menos uma verdade? Se eu nada sou além desse corpo torturado que nem é posse, mas extensão, o que eu teria a dizer de meu? As palavras que rastejam de mim como vermes gordos de hemácias me fazem desconfiar de que não há um sujeito que diz, não há eu. Então, quem fala? De quem são as palavras que me constrangem?
Ouço a respiração que raspa a porta. E temo.
Mas sigo.