Minha mãe morreu no dia 24 de agosto de 1999, quase dez anos depois desse domingo em Itacoatiara e exatos quarenta e cinco anos após o suicídio de Getúlio Vargas.
Ela não viveu o bug do milênio, não viu a explosão da internet, dos telefones celulares nem das redes sociais; não viu as Torres Gêmeas desabarem, não foi revistada por todos os lados para entrar num avião, embora tenha sido longamente interrogada numa salinha da imigração francesa por causa de seu sobrenome árabe, que, no entanto, é judeu; não viu a guerra no Afeganistão nem a extrema-direita distanciando Israel da paz com os palestinos; não viu a extrema-direita subindo ao poder e destruindo o Brasil; muito menos a invasão russa na Ucrânia; também morreu sem saber que um dia um vírus nos trancaria em casa.
Passamos juntas a virada de 1998 para 1999 na cobertura onde moramos nos últimos dois anos de sua vida, com vista para a praia de Copacabana, a praia do Diabo e a pedra do Arpoador. Naquele ano, o forte militar lançou seus próprios fogos de artifício, que caíam sobre as nossas cabeças, e me joguei com roupa na pequena piscina do nosso apartamento. Minutos depois, quando as pessoas saíam da praia, descabeladas, esperançosas, excitadas com o início do último ano do século, quando lá em casa todos os convidados já haviam brindado e se abraçado, minha mãe me trouxe uma toalha; meus mamilos castanhos marcavam o vestido branco colado à pele, transparente.
Sentíamos que uma nova era começava, e, embora minha mãe lutasse contra um linfoma havia oito anos, nenhuma de nós – nem eu nem ela nem minha irmã – imaginava que ela morreria em breve. Até então, a doença estava bem controlada, empurrando a morte sempre um pouco mais para longe.
Nunca pensei que fosse perdê-la tão cedo. Quando nos contou que tinha um câncer nos vasos linfáticos, ela também nos disse que, com os avanços da medicina, teria provavelmente vinte anos pela frente. Fiz o cálculo e me agarrei àquele número: eu teria trinta e dois. Quando o médico assistente do dr. Halley me anunciou, lá em casa, que ela estava indo embora, era o tempo normal da doença, a primeira coisa que vi foi o número desabando à minha frente. Ela teria mentido? O médico teria mentido para ela? Ela realmente acreditava que os avanços da medicina a fariam viver tanto ou apenas queria que acreditássemos nisso?
Com a morte da nossa mãe, eu e minha irmã deixamos o apartamento de Copacabana. Os dois anos pegando sol sobre o piso de pedra, os mergulhos na piscina, a vista para o mar, o vento que às vezes trazia uma tempestade escura, as pedaladas matinais começaram, então, a se tornar uma lembrança longínqua.
Hoje, quando tenho que ir a esse apartamento por algum motivo, faço questão de percorrer todos os aposentos. Entro na banheira da minha mãe e consigo vê-la, colo-me à parede onde sua cama se encostava; vou ao meu quarto, ao da minha irmã, à cozinha, só para sentir o passado me tocar a pele – ali, tudo o que desmoronou me parece ainda intacto, preservado pela casa. Mesmo que tantas pessoas tenham morado lá, depois e por muito mais tempo do que nós, é como se a cobertura da Francisco Otaviano guardasse apenas a memória daqueles dois anos nos quais nos amamos tanto – e em que, apesar da doença, ou talvez por causa dela, vivemos os dias com uma intensidade que poucas vezes eu encontraria depois.
Me assusto quando penso que faz mais de vinte anos que minha mãe morreu. Que ela não sabe nada da pessoa que venho sendo desde então, que ela não estava aqui quando publiquei meu primeiro livro, quando tive meus filhos, nem quando decidi me mudar para Lisboa, onde, por ironia do destino, nasci.
Terá perdido mais coisas do mundo ou da vida de suas filhas?
Terá perdido mais coisas do mundo ou da vida de seus netos e netas, que nunca a conheceram senão por nós?
Quando falo sobre ela para meus filhos, estou lhes mostrando como ela era ou como eu sou?
Quanto eu me pareço com ela?
Quanto eu sou ela?
Quanto ela sou eu?
Quanto resta de uma pessoa morta em nós?
Quanto de nós uma pessoa morta leva?
Todas as vezes que sofri por amor, chorei por nós duas. Todas as vezes que me apaixonei por homens mais velhos, impossíveis, comprometidos, neuróticos, chorei por nós duas. E em todas as vezes me lembrei da sua confissão, Me sinto realizada no trabalho, nas amizades, nas viagens, com vocês, menos no amor. E, junto, a preocupação, Tenho tanto medo que você me repita.
No seu medo, a falha, a praga – o desejo talvez?
O que passa de mãe para filha nem a mãe pode escolher?
Ou pode?
Aos vinte anos, quando perdi minha mãe, eu me tornei mulher uma segunda vez. Me desfiz de grande parte do que era dela – roupas, caixas, sapatos, objetos, móveis – e passei a carregá-la no ventre.