[N.2 | 2023]

Maternagem e paternagem feministas 

bell hooks

O foco feminista em crianças foi um componente central do movimento feminista radical contemporâneo. Ao educar as crianças sem sexismo, as mulheres esperavam criar um mundo futuro onde não haveria necessidade de um movimento antissexista. Inicialmente, o foco nas crianças destacou sobretudo os papéis sexistas dos sexos e a maneira como eles eram impostos às crianças desde o nascimento. A atenção feminista às crianças quase sempre se concentrou em garotas, em atacar o preconceito sexista e em promover imagens alternativas. De vez em quando, as feministas chamavam atenção para a necessidade de educar os garotos de maneira antissexista, mas majoritariamente a crítica ao patriarcado masculino, a insistência de que todos os homens viviam uma situação melhor que todas as mulheres, aos poucos se constituía. O pressuposto de que garotos sempre tiveram mais privilégio e poder do que garotas incentivou as feministas que priorizaram o foco nas garotas.

Uma das principais dificuldades que pensadoras feministas encaravam quando confrontavam o sexismo na família era o fato de, com muita frequência, mães transmitirem o pensamento sexista. Mesmo nos lares onde não havia um pai presente, as mulheres ensinavam, e ensinam, pensamentos sexistas para as crianças. De maneira irônica, várias pessoas pressupõem que qualquer lar é automaticamente matriarcal quando a mulher é chefe de família. Na realidade, mulheres chefes de família na sociedade patriarcal, com frequência, sentem-se culpadas pela ausência de uma figura masculina e ficam hiperatentas à comunicação de valores sexistas para as crianças, principalmente para os garotos. Há pouco tempo, especialistas conservadores responderam a uma série de atos violentos perpetrados por jovens garotos de todas as classes e raças, sugerindo que mulheres solteiras não conseguem criar meninos saudáveis. Isso simplesmente não é verdade. Fatos comprovam que alguns dos mais amorosos e poderosos homens em nossa sociedade foram criados por mulheres solteiras. Mais uma vez, devemos reiterar que a maioria das pessoas pressupõe que mulheres solo que educam crianças, em especial filhos, não ensinarão um garoto a se tornar um homem patriarcal. Esse simplesmente não é o caso. 

Dentro de culturas de dominação patriarcal capitalista de supremacia branca, crianças não têm direitos. O movimento feminista foi o primeiro movimento por justiça social nesta sociedade a chamar atenção para o fato de que nossa cultura não ama crianças, continua a enxergar crianças como propriedade do pai e da mãe, para que façam com elas o que bem entenderem. Violência adulta contra crianças é norma em nossa sociedade. Há o problema de que, em sua maioria, pensadoras feministas jamais quiseram chamar atenção para a realidade de que mulheres são, com frequência, as principais culpadas pela violência diária contra crianças, simplesmente porque são as principais responsáveis por tomar conta delas. Ainda que fosse crucial e revolucionário que os movimentos feministas chamassem atenção para o fato de que a dominação masculina no lar frequentemente cria uma autocracia em que homens abusam sexualmente de crianças, o fato é que multidões de crianças são abusadas de modo verbal e físico por mulheres e homens, todos os dias. O sadismo maternal com frequência leva mulheres a abusar emocionalmente de crianças, e a teoria feminista ainda não ofereceu nem crítica feminista nem intervenção feminista quando a questão é violência de mulher adulta contra criança. 

Em uma cultura de dominação, em que as crianças não têm direitos civis, aqueles que são poderosos – as mulheres e os homens adultos – podem exercer controle autocrático sobre as crianças. Dados médicos comprovam que crianças são abusadas violentamente todos os dias nesta sociedade. Vários desses abusos ameaçam a vida. Muitas crianças morrem. Mulheres perpetuam essa violência tanto quanto homens, se não mais. Uma grande diferença entre pensamento e prática feministas tem sido a recusa do movimento em confrontar diretamente a violência de mulheres adultas contra crianças. Enfatizar a dominação masculina torna fácil para mulheres, inclusive pensadoras feministas, ignorar os mecanismos de que as mulheres dispõem para abusar de crianças, porque todos nós fomos socializados para aderir ao pensamento patriarcal, para aderir à ética da dominação que diz que os poderosos têm direito de comandar quem não tem poder e podem usar quaisquer meios para subordiná-los. Na hierarquia do patriarcado capitalista de supremacia branca, a dominação de mulheres por homens é justificada, da mesma maneira que a dominação adulta de crianças. E ninguém quer de fato chamar atenção para as mães que abusam. 

Frequentemente conto a história de quando eu estava em um jantar chique durante o qual uma mulher descreveu sua maneira de disciplinar o filho com um beliscão, apertando a pele do garoto pelo tempo necessário para controlá-lo. E como todos aplaudiram o desejo dela de ser disciplinadora. Compartilhei minha consciência de que o comportamento dela era abusivo, que ela estava potencialmente plantando as sementes para que esse garoto crescesse e fosse abusivo com as mulheres. Ressaltei para quem estava ouvindo que se tivéssemos ouvido um homem dizer que belisca a mulher com força para controlar seu comportamento, isso teria sido imediatamente compreendido como comportamento abusivo. Ainda assim, quando uma criança é machucada, esse tipo de dominação masculina é desculpada. Esse não é um incidente isolado – violências muito mais severas são diariamente praticadas por mães e pais, contra crianças. 

De fato, a crise que as crianças desta nação estão encarando é a de que o pensamento patriarcal, ao confrontar as mudanças feministas, transforma as famílias em um campo de guerra mais do que quando a dominação masculina era a norma em todos os lares. O movimento feminista serviu como catalisador, revelando a grave extensão em que o abuso sexual masculino de crianças aconteceu e acontece na família patriarcal. Isso começou com mulheres adultas, dentro do movimento feminista, recebendo cuidados terapêuticos, reconhecendo que eram sobreviventes de abuso e levando esse reconhecimento do âmbito particular da terapia para o discurso público. Essas revelações criaram o contexto positivo ético e moral para crianças confrontarem o abuso que acontecia no presente. No entanto, apenas por chamar atenção para o abuso sexual masculino de crianças, não criou um cenário em que multidões de pessoas pudessem compreender que esse abuso está ligado à dominação masculina, que isso só acabará quando o patriarcado for eliminado. O abuso sexual de crianças por homens acontece mais frequentemente e é mais relatado do que o abuso por mulheres, mas a coerção sexual feminina de crianças deve ser vista como algo tão horrendo quanto o abuso por homens. E o movimento feminista deve criticar as mulheres que abusam, tão severamente quanto critica os homens que abusam. Para além do âmbito do abuso sexual, a violência contra crianças assume várias formas, sendo as mais comuns os atos de abuso verbal e psicológico. 

A humilhação abusiva estabelece fundamentos para outras formas de abuso. Garotos são com frequência sujeitados a abusos quando seu comportamento não está em conformidade com noções sexistas de masculinidade. Eles são frequentemente humilhados por adultos sexistas (principalmente mães) e outras crianças. Quando homens que tomam conta de crianças internalizam o pensamento e o comportamento antissexistas, meninos e meninas têm oportunidade de ver o feminismo em ação. Quando pensadores e ativistas feministas oferecem a crianças um contexto de educação em que preconceitos antissexistas não são o padrão usado para julgar o comportamento, garotos e garotas são capazes de desenvolver autoestima saudável. 

Uma das intervenções mais positivas do movimento feminista em nome das crianças foi criar uma maior conscientização cultural da necessidade de participação igual dos homens na criação, não somente para construir equidade de gênero, mas também para estabelecer melhores relacionamentos com as crianças. No futuro, estudos feministas registrarão todas as formas de a paternagem melhorar a vida das crianças. Ao mesmo tempo, precisamos saber mais sobre maternagem e paternagem feministas, sobre como, na prática, podemos criar as crianças em ambientes antissexistas e, o mais importante, precisamos saber mais sobre que tipo de pessoas as crianças educadas nesses lares se tornam. 

As ativistas feministas visionárias jamais negaram a importância e o valor da paternagem, mesmo enquanto trabalhamos para criar mais reconhecimento da maternidade e do trabalho das mulheres que exercem a maternagem. É um desserviço para todas as mulheres quando a glorificação da participação do homem na parentalidade leva à depreciação e desvalorização do trabalho positivo de maternagem das mulheres. No início do feminismo, as feministas eram duras na crítica à maternagem, opondo essa tarefa a carreiras consideradas mais libertadoras, mais autoafirmadoras. No entanto, no meio da década de 1980, pensadoras feministas desafiavam a desvalorização feminista da maternidade e a supervalorização do trabalho fora de casa. Ao escrever sobre esse tema em Feminist Theory: From Margin to Center, apresentei este ponto de vista: 

Trabalhar em um contexto social em que sexismo ainda é norma, em que há competições desnecessárias promovendo inveja, desconfiança, antagonismo e maldade entre indivíduos, torna o trabalho estressante, frustrante e, com frequência, insatisfatório… Muitas mulheres que gostam e apreciam o trabalho assalariado sentem que isso ocupa muito de seu tempo, deixando pouco espaço para outras buscas satisfatórias. Enquanto o trabalho pode ajudar mulheres a ter um grau de independência financeira ou até mesmo ser financeiramente autossuficientes, para a maioria das mulheres, ele não atendeu de maneira adequada às necessidades humanas. Como consequência, a busca das mulheres por um trabalho que proporciona realização, em um ambiente de cuidado, levou a reforçar a importância da família e os aspectos positivos da maternidade. 

Ironicamente, quando pensadoras feministas trabalharam para criar uma imagem mais balanceada de uma cultura de maternagem, a cultura patriarcal dominante lançou uma perversa crítica à maternagem solo e aos lares comandados por mulheres. Essa crítica foi mais dura quando o assunto era bem-estar. Ignorando todos os dados que mostram o quanto mães solteiras amáveis exercem habilidosamente a maternagem com pouca renda – tanto quando recebem assistência do Estado como quando são assalariadas –, críticas patriarcais chamam atenção para famílias disfuncionais cujo chefe é uma mulher; agem como se isso fosse norma, e então sugerem que o problema poderia ser solucionado se houvesse um homem no contexto, como provedor patriarcal e chefe da família. 

Nenhuma reação antifeminista foi tão prejudicial para o bem-estar das crianças quanto a depreciação de mães solteiras pela sociedade. Em uma cultura que tem a família patriarcal constituída por pai e mãe em mais alta estima do que qualquer outro arranjo familiar, todas as crianças se sentem emocionalmente inseguras quando são de uma família que não está de acordo com o padrão. Uma visão utópica da família patriarcal permanece intacta, a despeito de todas as evidências que comprovam que o bem-estar das crianças não está mais assegurado em uma família disfuncional cujo chefe é um homem do que em uma família disfuncional cuja chefe é uma mulher. Crianças precisam ser educadas em ambientes amorosos. Sempre que a dominação estiver presente, faltará amor. Mães e pais amáveis, sejam solteiros ou casados, gays ou heterossexuais, sendo a mulher ou o homem chefe da família, têm mais probabilidade de criar crianças saudáveis e felizes, com boa autoestima. Em futuros movimentos feministas, precisamos trabalhar mais para mostrar a mães e pais como acabar com o sexismo muda positivamente a vida da família. O movimento feminista é pró-família. Acabar com a dominação patriarcal de crianças, seja por homens, seja por mulheres, é a única maneira de tornar a família um lugar no qual as crianças se sentem seguras, no qual elas podem ser livres, no qual podem conhecer o amor.