[N.6 | 2023]

O parto não é um ato heroico

Claudia Magnani

Tive um parto natural, dos que se diriam “bem-sucedidos”. As maravilhosas obstetras do Sofia Feldman e a doula chegaram às 22h30 em casa, enquanto eu já estava no final de um belo e longo trabalho de parto, para me acompanharem naquele que começou como um processo domiciliar. Enea nasceu às 23h43 sem intervenções, sem médicos, embora algumas emoções imprevistas: tiveram de me levar para a casa de parto, de acordo com o protocolo de prevenção, devido à presença de mecônio nas águas e à placenta, que deixou a gente numa longa espera antes de sair, à luz do sol. Apesar disso, correu tudo muito bem, de forma totalmente natural, bem como eu queria, e fiquei muito feliz. Consegui!, falava comigo. Você foi uma guerreira!, repetiam as pessoas ao meu lado, alimentando minha autoestima por ter realizado o que parecia, aos olhos de todos, um verdadeiro ato heroico. Comecei minha experiência de mãe assim, vitoriosa e radiante. 

Essa sensação, todavia, não durou muito. Já durante o primeiro mês, esperava-me uma triste surpresa. Praticávamos a dedicação e a amamentação exclusivas, demanda livre, seguíamos todas as orientações do Sofia, do Odete, da doula e, ainda assim, Enea perdia (muito) peso e era preciso complementar o meu leite com o leite artificial.

“L E I T E A R T I F I C I A L”: um substantivo e um adjetivo que, postos um após o outro, me horrorizavam, evocando imagens espantosas e o tabu mais temido: o meu corpo não dava conta? Eu não dava conta de alimentar meu filho com o meu leite? 

Seguiram-se dias, semanas, meses doloridos. Sofri visceralmente. Fiquei deprimida. Chorei todos os dias. Sentia-me culpada. Sentia-me envergonhada. Li e fiz, literalmente, tudo o que podia. Meditação para não estressar, florais, massagens, alimentos galactogênicos, estimulação da mama, tirar o leite três vezes ao dia, mas nada. É só descansar e não estressar demais. Relaxa, vai melhorar, você tem muito leite! É cientificamente comprovado que não existe uma baixa produção de leite materno, eu tive o mesmo problema, mas consegui, você vai conseguir! As dicas e as regras estavam claras: todo corpo de mulher tem leite suficiente, afirma a ciência, repetia a doula, falava a mãe que conseguiu amamentar após muita dificuldade. Por que, então, o meu – que fui tão bem no parto – estaria falhando? Eu me perguntava obsessivamente. 

Quando comecei a dar leite artificial para meu filho, não saía de casa para não passar a vergonha de amamentá-lo artificialmente na frente dos outros. Meu coração doía toda vez que via outra mãe amamentando, com seu seio cheio, o próprio neném. Sentia-me julgada, inadequada, incapaz, imperfeita. 

Isso foi me consumindo, até que, no quarto mês, me dei conta de que minha dor estava afetando meu filho bem mais do que o leite em pó. Senti o tanto que estava sofrendo pela pressão sobre certa idealização do parto e da amamentação que, se não fossem totalmente “naturais”, seriam menos importantes, menos fortes, menos amorosos na construção da maternidade e do laço com o próprio filho. Eu, que sou antropóloga, mistificando o natural. Eu, que sou filha de cesárea eletiva, de leite artificial, que nunca senti falta do amor materno (muito pelo contrário). Que fique claro: parto natural e amamentação exclusiva são auspicáveis e têm que ser encorajados sempre que possível. Mas eis que vem a palavra mágica: possível

Foi, então, que percebi que cada mulher que se torna mãe passa pela experiência que é possível para ela, e que é sempre “plena” quando consciente e respeitosa. O meu parto não foi mais valioso do que outros, assim como a minha amamentação não o foi menos. Assim, começaram a me incomodar os relatos de partos naturais que se tornavam histórias épicas de como, apesar da grande dor, a mulher tinha dado conta, tinha conseguido. Mulheres guerreiras. Partos vitoriosos. Atos heroicos. Como se os partos se medissem na régua do heroísmo e se qualificassem pelo ethos da guerra. Como se as mulheres que não tiveram partos naturais não o fizeram porque não deram conta. Enfim, que horror! 

Acredito que seja preciso reestabelecer um ponto de partida na reflexão sobre parto: antes de tudo, que cada parto é diferente e é único. O meu foi assim, como foi por uma combinação de inúmeros fatores e circunstâncias que permitiram que assim fosse. Não sinto que dei mais conta do que quem escolheu uma peridural ou teve que passar por uma cesariana, pois não sei, e menos ainda posso imaginar o que essas mulheres enfrentaram, emocional, psicológica e fisicamente.

O mesmo vale para a amamentação. “Não conseguir” amamentar de forma natural não deve implicar uma ideia de fracasso (do corpo, da mãe, da relação com o neném…). Nesse caso, também é preciso olharmos para uma experiência muito mais complexa e ressignificada de maternidade. Amamentar com o peito não significa conseguir amar mais o próprio filho ou filha. Não significa ser uma mãe melhor que outra. Não significa ter um corpo mais materno. Não significa ser mais forte e aguentar mais que outras. Não significa criar um laço mais profundo com o neném. Amamentar com o peito significa, simplesmente, dar o melhor alimento para ele, quando possível. Diferentemente, quando isso não for possível, por razões de várias naturezas, a mãe dará outro leite que será, em seu caso, seu melhor possível. 

E isso significa, então, não reconhecer a importância da amamentação natural? De forma alguma. Isso significa justamente o contrário: reconhecer o valor dessa prática pelo que é, ou seja, nutricionalmente melhor. Ao mesmo tempo, isso significa retirar outros significados e símbolos que mistificam esse ato, associando-o a uma expectativa da maternidade – de amor maternal e de heroísmo feminino – baseada numa perigosíssima dicotomia: como se fosse algo que, necessariamente, há de ser bem sucedido (então, heroico) para não ser um fracasso, uma culpa, uma vergonha.

Enfim, eu queria dizer isso. Só operando essa ressignificação da experiência da maternidade, desmistificando o parto natural e a amamentação, será possível que toda mãe possa honrar sua experiência de maternidade, do jeito que foi possível para ela.