[N.11 | 2023]

Talvez ela não precise de mim [fragmento]

Anna Virginia Balloussier

3 de março de 2020

Dói tudo lá embaixo. Onde antes existia uma vagina, um ânus, um períneo, agora parece existir um baiacu, o peixe que infla quando se sente ameaçado por um predador. Voltamos para o quarto há pouco. Minha bolsa d’água rompeu na madrugada, mas sem o senso de espetáculo que as novelas nos vendem, com líquido amniótico esguichando para todos os lados. Foram horas de goteira, e horas de trabalho de parto, quase vinte. Um parto doloroso, em que cada contração me atingia como um piano que vai sendo lentamente içado até desabar com tudo da altura do décimo andar, enquanto as pessoas na sala me diziam: Respira. Violeta nasceu às nove e cinquenta e sete da noite do dia três de março de dois mil e vinte, sob o signo de peixes, que dizem ser como uma esponja que absorve as energias que o cercam, as boas e as más. Não me parece um bom contrato para os tempos que a aguardam. 

Quando enfim sós, eu, Victor e a criatura a quem transmitimos o legado da nossa miséria, sou tomada por dois sentimentos. 

Primeiro vem o amor, amor em estado bruto, daqueles que podem ser explicados assim: até aqui, você amou um determinado número de pessoas. Talvez tenha até decidido, numa noite entorpecida por Jorge Drexler, que com aquele cara encontrou a paz dos que não precisam mais caçar na noite rapazes chamados Rafa, ou Gui, ou Bento. Sim, você amou e, se der sorte, conjuga esse verbo no presente. Mas, caso um trem descarrilado avançasse sobre essa pessoa, você se jogaria na frente sem pestanejar? É esse tipo de amor, que prevalece sobre o instinto de sobrevivência? Hipoteticamente, todo mundo gosta de pensar que sim. Na hora do vamos ver, seu corpo responderia à altura? 

Deixar-se destroçar por alguém não é algo que se decide com a cabeça, nem é o coração que deve levar o crédito aqui, tampouco a boca que jura: Eu levaria um tiro por você. São as pernas a se mover ou paralisar que darão a medida do seu afeto, o reflexo de se colocar entre a morte certa e a pessoa que se ama é o gesto mais inequívoco de entrega. Pena que não dê para fazer muito em matéria de amor quando o que resta é a carne esmigalhada.

Relacionamentos entre mãe e filha não são intrinsecamente bons. Conheço as que se detestam, as que, quando muito, se toleram. Uma amiga contou que fez terapia de regressão e se viu no útero, de lá ouvia um tambor, que identificou como batidas de um coração, e a voz abafada da mãe desejando aos prantos que aquela gravidez não fosse para a frente. Sou grata à mãe que tenho, mas nunca tive uma conversa franca sobre o que a maternidade significou para ela nas quatro oportunidades que teve de experimentá-la, Carlos Eduardo, Octavio Augusto, Anna Virginia e Andrea Regina, fui a de número três. Posso falar apenas por mim quando digo que o amor por um filho é diferente de qualquer outra coisa. Um sentimento que dispensa racionalidade, ao contrário da dinâmica de um casal, na qual estamos sempre amando porque, amando apesar de. A instantaneidade deste querer bem, e o senso de sacrifício, não pertencem à ordem semântica. No momento em que a tive no colo pela primeira vez, nós duas peladas na sala do parto, pensei: Eu vou amar esta pessoa pelo resto da vida, não importa o que ela faça. Nunca senti nada parecido — nem com namorados, nem mesmo com meus pais. É possível que Violeta pense igual a respeito de mim, preciso estar preparada. 

Na rabeira do amor chega o pânico. Victor aparenta estar bem mais confiante no que deve ser feito. Nem segurá-la no colo eu quero sem supervisão. Vai que escorrega. Que engasga no peito que a alimenta. A maternidade, essa atividade que bilhões de mulheres exerceram desde que o mundo é mundo, em mim parece caber mais como um desejo do que uma capacidade. 

Sei que uma dose generosa dessas sensações ruins vem dos hormônios. Começo hoje minha Quarentena Puerperal, que soa como nome de uma banda punk particularmente ruim, mas é isto: quarenta dias pós-parto em que a mulher atravessa o puerpério, com a queda livre dos hormônios que tomaram seu corpo de assalto na gravidez. Oito em dez de nós, leio num desses sites de maternidade para mulheres perdidas como eu, experimentam sentimentos de tristeza. 

Médicos chamam essa fase de baby blues. Também recomendam não transar, ou ao menos se poupar da penetração, pois sua vagina precisa se restabelecer para tanto — o baiacu ameaçado por um predador. Transamos uma hora antes da bolsa rasgar. A perspectiva de sexo me parece, agora, como aqueles navios a se perder de vista, tracinhos distantes no horizonte que você não consegue distinguir se estão vindo em sua direção ou zarpando para alto-mar. 

Estou com fome. Não como nada desde a noite anterior. Para não mentir, fui forçada a dar três goles num pavoroso suco de laranja que o hospital servia, para ganhar energia da glicose e conseguir ir até o fim com o parto. Devoro parte das refeições que as enfermeiras trouxeram ao longo do dia e eu recusei. Uma salada de frutas cinza, uma esfirra acho que de frango, um pão de fôrma seco com queijo minas sem sal. Violeta dorme num berço entre a cama-maca onde estou e o sofá do acompanhante. Tudo o que peço é que ela ainda esteja respirando quando eu acordar.