[N.12 | 2023]

Afetos ferozes [fragmento]

Vivan Gornick

Dia glorioso, hoje: Nova York em plena intensidade sob o sol claro de outono, os edifícios delineados com nitidez contra o céu limpo, ruas apinhadas com pirâmides de frutas e legumes, flores em vasos de papel machê recortando círculos na calçada, bancas de jornal vibrantes em branco e preto. Na Lexington Avenue, em especial, uma onda de adorável movimento humano ao meio-dia, uma multidão de apetites e absorções urbanos.

Combinei de caminhar com minha mãe no fim do dia, mas vim cedo à cidade para vagar por conta própria, sentir o sol, ver o movimento, estar no mundo sem as interpretações intervenientes de uma companhia volúvel como ela. À altura da rua 73, saio da Lexington e me dirijo ao Whitney, pensando em dar uma última olhada numa exposição temporária. Já perto do museu, desenhos de um expressionista alemão na vitrine de uma galeria atraem meu olhar. Entro, viro para a parede mais próxima e dou de cara com duas grandes aquarelas de Nolde, com suas famosas flores. Já olhei diversas vezes para as flores de Nolde, mas hoje é como se as visse pela primeira vez: aquela difusão quente e exuberante que o caracteriza, apresentada, percebo de repente, em seus contornos. Vejo a qualidade ardente da intenção de Nolde, a séria paciência com que as flores o absorvem, a concentração clara e determinada do artista em seu tema. Vejo isso. E penso: é a concentração que dá essa força à obra. O espaço dentro de mim se amplia. Aquele retângulo de luz e ar por dentro, em que o pensamento se desvenda, a linguagem cresce e a reação se torna inteligente, aquele famoso espaço cercado por solidão, ansiedade, autocomiseração se abre plenamente enquanto olho para as flores de Nolde. 

No vestíbulo do museu, paro para ver a exibição permanente do circo de Calder. Como sempre, há uma multidão em torno, rindo e se admirando com a maravilha que são os fragmentos de tecido e arame de Calder: suspirantes, chorosos, triunfantes. A meu lado estão duas mulheres. Olho para seus rostos e as descarto: louras sonhadoras de olhos azuis, de meia-idade, vindas do Meio-Oeste. Então uma das duas diz: “É como uma segunda infância”, e a outra responde, azeda: “Melhor do que a primeira de qualquer um”. Fico surpresa, deleitada, constrangida. Penso: Que tremenda idiota você é, achando-se grande coisa com esse seu espanto idiota pelo que ela disse. De novo, sinto o espaço interno se alargar inesperadamente.

Aquele espaço. Ele começa no meio da minha testa e acaba no meio do meu baixo-ventre. Varia, sendo da largura do meu corpo ou estreito como uma fenda na parede de uma fortaleza. Nos dias em que o pensamento flui solto, ou, melhor ainda, quando adquire clareza graças ao esforço, o espaço se expande gloriosamente. Nos dias em que a ansiedade e autocomiseração o atravancam, encolhe – e como encolhe depressa! Quando o espaço é amplo e eu o ocupo por inteiro, sinto o sabor do ar, sinto a luz. Respiro regular e lentamente. Estou em paz e excitada, fora do alcance de influências ou ameaças. Nada pode me tocar. Estou a salvo. Livre. Penso. Quando perco a batalha de pensar, os contornos se estreitam, o ar fica poluído, a luz obscurece. Tudo é vapor e nevoeiro, e tenho dificuldade para respirar.

Hoje é um dia promissor, tremendamente promissor. Aonde quer que eu vá, independente do que veja ou do que entre em contato com meu olho ou meu ouvido, o espaço irradia expansão. Quero pensar. Não, o que estou querendo dizer é que hoje realmente quero pensar. O desejo se anunciou com a palavra “concentração”. 

Vou encontrar minha mãe. Estou voando. Voando! Quero dar a ela um pouco dessa luminância que explode em mim, sifonar para dentro dela minha imensa felicidade por estar viva. Só porque é a pessoa mais velha com a qual tenho intimidade, e neste momento amo todo mundo, inclusive ela. 

“Ah, mãe! Que dia eu tive”, digo.

“Me conte”, ela diz. “Você está com o dinheiro do aluguel deste mês?”

“Mãe, ouça…”, digo.

“Aquela resenha que você escreveu para o Times”, ela diz. “Tem certeza de que vão pagar?”

“Mãe, pare. Deixe eu contar o que andei sentindo”, digo.

“Por que você não vestiu uma roupa mais quente?”, ela pergunta. “Já estamos quase no inverno.”

O espaço interno começa a bruxulear. As paredes cedem para dentro. Fico sem fôlego. Engula devagar, digo para mim mesma, devagar. Para minha mãe, digo: “Você sabe mesmo como dizer a coisa certa no momento certo. É fantástico, esse talento que você tem. Me deixa inteiramente sem fôlego.”

Mas ela não se toca. Não sabe que estou sendo irônica. Tampouco sabe que está me anulando. Minha mãe não sabe que transformo sua ansiedade numa coisa pessoal, que me sinto aniquilada por sua depressão. Como saberia? Ela não sabe nem que estou aqui. Se eu dissesse à minha mãe que para mim é a morte ela não saber que estou aqui, ia me olhar com os olhos toldados de desolação e perplexidade, essa menina de setenta e sete anos, e exclamaria, furiosa: “Você não entende! Você nunca entendeu!”.