[N.9 | 2023]

A infância prometida

Maria Carolina Fenati

A anunciação

Descobri que estava grávida na manhã seguinte a uma noite de amor. Tive um sonho candente: estava em Belo Horizonte, cidade em que nasci, e buscava a minha mãe para almoçarmos. Ela entrava no carro e me dizia: “O templo feminino acaba de ser descoberto. Você já foi ver?” Respondia-lhe que não, e juntas seguíamos para o litoral, perto do mar. “Está ali.” — disse-me ela, apontando para a praia. Atravessamos a avenida beira-mar e vi: o templo era feito de areia, com amplas salas abobadadas, ligadas por extensos e estreitos túneis. As paredes do interior eram marcadas por pequenas concavidades, como se todo o edifício houvesse sido esculpido na areia com as pontas dos dedos (como quando as crianças fazem seus castelos na praia). Cada sala era habitada por uma deusa e lembro-me de ver Nossa Senhora, Iemanjá, Afrodite e Nanã, cada uma com seu altar luminoso e quase nu. De dentro das salas e dos corredores, escutava-se o rumor do mar, e de algumas janelas via-se o vai e vem da água. Caminhei pelo templo e lembro-me de sentir o corpo a contrair-se e a expandir-se, espremendo-se pelos corredores e alongando-se diante dos altares das salas. Impressionava-me a beleza do lugar, que parecia ter estado ali desde sempre, ao mesmo tempo antigo e futuro: vinha de tempos imemoriais e destinava-se ao futuro longínquo. Todavia, para mim, era a primeira vez que se revelava. Perambulei pelo templo por tempo suficiente para dele me lembrar com precisão e agora, que o descrevo pela primeira vez, vejo-o nitidamente. Não sei em que momento do sonho minha mãe e eu decidimos ir almoçar, saímos do templo, voltamos para o carro e seguimos.

O sonho era claríssimo — todavia qualquer coisa em mim evitava olhar frontalmente para o vislumbre que ele anunciava. Dediquei-me a percorrer na vigília o que conhecera em sonho e algumas vezes me pareceu que se tratava justamente de um útero gigantesco, herdado das mulheres que me antecederam, e no qual a espécie humana se mantém e se recria sob os olhos e os poderes das deusas. Inspirou-me também pensar na proximidade das águas — o som do mar no sonho era permanente, como talvez o som que uma criança escuta na barriga da mãe, e lembrei mais tarde que os altares do templo tinham ornamentos de metal enferrujados pela maresia, o que dava a tudo a mesma tonalidade terrosa, feminina, quente. Meditei sobre o poder das águas, e sobre as relações entre água e escuta — talvez o templo feminino seja, além do útero, o ouvido, com seus labirintos e galerias. As imagens reverberaram intensamente nos dias que se seguiram ao sonho e todas as vezes que ponderei se, para além de tudo isso, esse sonho seria uma anunciação, ou melhor, a anunciação claríssima de que não estaria mais só no mundo, de que na engrenagem do meu corpo a física mais simples e mais complexa iniciava os mecanismos de expansão da vida, sempre que eu pensava nisso, sentia uma emoção quase insuportável, uma inédita mistura entre alegria e timidez, espanto e ternura, medo e entusiasmo. Desviava então os olhos, em parte por não saber como acolher o que me acontecia, em parte por desejar viver sem urgência todos os detalhes e as nuances dessa aproximação.

Poucos dias mais tarde, uma amiga convidou-me para almoçar com ela, o marido e o filho pequeno. Fomos a um restaurante na Calçada do Combro, em Lisboa, onde vivíamos. Comíamos a sobremesa quando o menino, sentado no meu colo, perguntou-me: “O que tem na sua barriga?” Sorri em silêncio e ele insistiu: “— É comida?” Disse-lhe que sim, que poderia ser o peixe que eu havia comido. O menino, ainda no meu colo, ágil e alegre, me afirmou: “Não é comida, é um neném.” — disse-me isto e escapuliu-me do colo para brincar com as colheres e o resto de doce. Lembro-me de ter disfarçado a minha comoção, buscando vivê-la apenas intimamente, como se o menino tivesse me revelado um segredo que precisava expandir-se no meu interior antes de ser testemunhado por alguém. Fiquei ali, rodeada pelos amigos e ouvindo o som do restaurante naquele dia absolutamente comum. Durante o resto do tempo do almoço, dediquei-me a observar a mim mesma, as minhas sensações, e o menino que me havia feito a anunciação. Atento aos acontecimentos da infância, o menino afirmou-me com simplicidade e alegria que uma nova vida estava por vir. Como ele a havia visto? Será que o menino escutou a criança que se formava no meu ventre — tão pequena, tão informe, tão viva? Talvez ele lhe tenha feito uma promessa, ou então a viu e quis dizer-lhe, a ela e a mim, que alguém a esperava. Como o anjo que disse a Maria que ela não precisava temer, o menino inspirou-me a livrar-me do medo de acolher o que me acontecia. A simplicidade com que anunciou a vinda de uma nova vida enraizou o meu desejo e, se até ali eu sabia sem poder ver, agora eu confiava na intensidade dessa vinda justamente porque a desejava. Escutava as minhas próprias sensações e via-o brincar: aquelas mãos pequeninas animadas por um espírito novo, os olhos tão vivos, o indeterminado que era a sua vida, o afeto que o ligava ao mundo, o choro intermitente, o humor que o acompanhava! Tudo isto é simples e mágico, milagroso e banal — havia uma criança no meu ventre e, se isso era vertiginoso, singular e extraordinário, era, ao mesmo tempo, um ritual da espécie, e eu me sentia amparada pela história ancestral daquele acontecimento irrepetível. A infância me prometia o seu retorno na minha vida.

A espera

Os primeiros tempos da gravidez são de espera e segredo. A paisagem interior modifica-se com velocidade e, enquanto as células da criança multiplicam-se e especializam-se, o corpo da mãe se modifica: meus seios cresciam, a anca alargava-se. Sentia bastante fome, algum enjoo e muito sono — com essas sensações, dediquei-me sempre que pude à nutrição e ao descanso. Numa noite, sonhei que meus seios eram feitos de pedras preciosas, dentro das quais o leite se formava. Era belíssimo, sentia que uma sabedoria antiga operava no meu corpo para criar a nova vida e o seu alimento. Quando acordei, busquei escrever o que havia visto:

As mulheres têm pedras preciosas nos seios
Talvez todas talvez eu
Quando as glândulas se tornam minerais e lentamente rolam 
umas sobre outras as moléculas ancestrais do mundo novo

Quando brotam rígidas e reluzentes azuis verdes douradas violetas
as pedras são fonte de uma matéria branca 
que espera
que escorre 

Há mais universo nos seios do que nos umbrais.

Despertei-me de súbito e vi claramente que algo que imaginava (e temia) antes da gravidez havia se dissipado ali. Imaginava que, no dia em que engravidasse, eu atravessaria uma espécie de portal sem retorno, e isso me fazia sentir uma terrível vertigem mental. Imaginava que teria que tornar-me mãe repentinamente e, como não fazia ideia de como isso se fazia, sentia medo e ameaça. Por vezes, imaginei como seria passar pelos umbrais desse portal, e a verdade é que via tudo tão desconhecido que preferia não olhar. Esse sonho vinha me dizer que, nessa edificação mental, esquecia-me do fundamental: quando engravidasse, eu estaria, justamente, grávida. Isto é: já se estariam a operar em mim transformações que me afastavam daquele estado mental anterior, aquele que, por não saber, projetava sem cessar as imagens que temia. Agora as ancas alargavam-se, sentia um sono infantil, os seios cresciam e era isto que me ensinava a escutar o universo que se abria no meu ventre e na minha vida. Como sempre, quando o que nos é dado viver acontece, aquilo que imaginávamos antes dissipa-se como poeira. A experiência é a verdadeira autoridade, dizia Bataille. 

Tudo isso acontecia intimamente — apenas meu marido e eu sabíamos da gravidez, o que fazia dela também um segredo. Enquanto a barriga não cresce, as mutações do nascimento são sutis e, para quase toda a gente, invisíveis. Degustávamos esse segredo entre nós — falávamos da bebê, imaginávamos nomes, adivinhávamos os olhos e a voz; temíamos o mundo que ela iria encontrar, desejávamos que fosse corajosa e humilde; fantasiávamos expectativas, olhávamos possibilidades para o seu mapa astral, comíamos iogurte para fortalecer seus ossos; ficávamos em silêncio, e isso era profundo e luminoso. Hannah Arendt escreveu que tudo o que vive emerge na obscuridade: “Por mais forte que seja a sua tendência para se orientar para a luz, aquilo que é vivo necessita da segurança da obscuridade para alcançar a maturidade”. Talvez esta seja a razão pela qual a intensidade luminosa da gravidez seja durante os primeiros meses, quase imperceptíveis ao mundo público: dentro do útero, a minha bebê era nutrida, aquecida, acolhida, protegida; e eu, que vivia tantas mutações, sentia-me protegida pelo silêncio em que isso acontecia e esquivava-me de tudo o que poderia vir a antecipar as minhas decisões, obstruir a escuta da dádiva ou tornar excessivamente visível o que não era senão um mistério radicalmente tangível. No escuro, a bebê crescia e eu a acolhia com espanto, ternura e em silêncio. 

Talvez pela força da dádiva (Leiris escreveu sobre a receptividade a algo que nos é ofertado sem que o tenhamos exatamente buscado), talvez como efeito da metamorfose do corpo, talvez por sentir que agora alguém testemunharia pelo resto da vida as minhas qualidades e os meus dramas, talvez por tudo isto e por outros motivos que não sei — gerar uma nova vida fortaleceu em mim o desejo de revolução interior. Escutava um apelo para que o mais íntimo fosse revolvido e confiava que mesmo as minhas repetições mais arraigadas poderiam ter suas raízes suspensas. Quer dizer: a gravidez foi simultânea a uma radical suspensão da identidade, e a chegada da nova vida era também um aviso da minha morte e do meu renascimento. 

Se o epicentro das mutações era aprender a tornar-me mãe, os seus efeitos alargavam-se e atingiam com suavidade, e de modo implacável, diferentes camadas da vida. Vi ressentimento, mágoa, raiva, angústia, medo; rememorei tristezas de que já não me recordava, me revi criança e adolescente, nomeei mágoas que experimentei nas relações amorosas; sonhei com doenças dos meus ancestrais, observei o sofrimento vivido pelas mulheres que me antecederam e que, vivo e feroz, se atualizava em mim. Diariamente, percebia de que modo esses sentimentos se escondiam e se perpetuavam em gestos repetitivos, em hábitos enrijecidos ou em trágicas crenças íntimas. Via tudo isso e, como noutros momentos da vida, sentia-me perturbada; todavia, com a gravidez, via com mais clareza e sentia simultaneamente um apelo intenso, e um poder imenso, para a metamorfose. 

Era como se tivesse um bisturi nas mãos — experimentei cortar, secar, urdir, cuidar, romper, operei de modo profundo. Escutava minhas estruturas a ranger e isso era dolorido e jubiloso; interrompi gestos de amargura, ri do que me perseguia, destemi o entusiasmo, acolhi o encantamento. Talvez esse poder operatório fosse um efeito da graça, como se a força que me oferecia uma criança me desse também o poder de cuidar mais radicalmente do corpo no qual ela se formava. De todo modo, não sabia o que adviria dessas mutações e, se por um lado as operações eram efeitos da clarividência, por outro, eram feitas quase às cegas: queria abrir, arejar, limpar e ampliar o espaço interior como um gesto de acolhimento ao desconhecido. A experiência da gravidez era simultaneamente a clarividência e a escuridão.

Pouco a pouco, a barriga cresce e aquilo que era vivido em silêncio torna-se a boa nova. Lembro de degustar a notícia como uma criança degusta uma bala na boca, rolando-a na língua, tornando-a redonda e brilhante. Todavia, escapar ao silêncio foi para mim exigente e me causou timidez. Talvez porque faltavam-me as palavras, talvez porque a intensidade era outra vez tamanha que algo em mim recuava, talvez por querer ainda me manter no aconchego do silêncio. De todo modo, pouco a pouco toda a gente soube, e lembro-me da alegria que as pessoas sentiam (especialmente as avós). Lembro-me ainda das pessoas que me felicitaram sem me conhecer, que me desejaram sorte e que me abençoaram quando me viram num café, numa fila, numa biblioteca. Uma criança é uma novidade no mundo, disse também Hannah Arendt, e quem vê a sua chegada respira de alívio porque a vida, apesar de tudo e por tudo, continua. 

Nessa época, tive outro sonho: era uma catedral antiga, com um teto altíssimo, no qual via-se uma rosa branca. A flor era imensa, esculpida em mármore, e estava virada para baixo, de modo que quem a olhava desde os bancos da catedral via com nitidez o desenho formado pelas pétalas. Nunca havia visto uma força tão sensual e feminina a ocupar a abóboda de uma igreja, e meditava sobre isso quando, baixando os olhos, reparei que, nos bancos, só havia mulheres, e que eram todas velhas. A verdade é que eram velhíssimas, algumas pareciam árvores de duzentos anos. Falavam entre si e eu ouvia um permanente murmúrio rouco, sem conseguir entender o que diziam. Percebi, então, que o único homem que havia ali estava no púlpito, vestido como um padre, e conduzia um ritual. Dediquei-me a observar o que acontecia: o homem tirava de uma caixa um pequeno papel e lia alto o nome de uma família; em seguida, buscava o bebê destinado à família sorteada e entregava-o a um grupo de mulheres velhas. Essa sequência repetiu-se várias vezes — o homem, o nome, o bebê, as velhas; o mesmo homem, outro nome, outro bebê, mais velhas. As mulheres subiam em pequenos bandos ao altar. Quando saíam com o bebê, passavam-no de colo para colo, apertavam-no contra o peito, falavam no seu ouvido, limpavam-no com as bordas dos vestidos. Apenas uma vez tentei ir atrás de um desses bandos e ainda lembro do rosto enrugado da velha que, impedindo que eu me aproximasse, me disse: “Isto não é seu agora, somos nós que vamos cuidar dele.”

Durante o sonho, senti angústia, que persistiu depois de acordar. Imaginava que as velhas queriam tomar a nova vida, quase como se a fossem engolir, e temia que o gesto delas abafasse o que nos bebês era novo e claro. Perguntava-me onde estariam a mãe e o pai de cada bebê, com os quais, imaginava eu, eles estariam mais abertos ao imponderável das suas próprias vidas. E o que sentiriam os bebês? As imagens inquietavam-me na manhã que se seguiu ao sonho e, aos poucos, percebi de que modo elas encontravam ressonância na minha vida. Diante da promessa de um bebê, o que havia de mais antigo em mim se levantava, como as velhas da igreja, atraído pelo que na criança havia de futuro. Na minha experiência interior, dava-se, então, uma espécie de batalha na qual o velho, ameaçado pela própria tendência a petrificar-se, buscava revolver-se para renovar-se, inspirado pelo clarão da vida nova. Sentia claramente também que o mais antigo era o que dava ao novo as condições de possibilidade da sua existência — eu me sentia acolhida, como disse, pela sabedoria feminina ancestral que criava em mim a tecnologia da reprodução da vida. Imaginei-me bebê no colo das velhas, vi-me sentada sob um teto de rosa branca e senti o amparo desta força feminina. 

Talvez seja por amar tão profundamente o novo que o mais antigo se torna capaz de gerá-lo e acolhê-lo. Experimentava isso interiormente e testemunhava que a batalha do nascimento, sendo de algum modo uma ameaça (há sempre risco), era essencialmente uma oportunidade luminosa de honrar a vida enquanto transformação. Essa confiança me havia sido dada pela experiência e eu vivia isso intimamente há alguns meses. Todavia, agora que a novidade era partilhada, essa experiência tornava-se comum e o sonho viera me ensinar essa passagem. Meus ancestrais tornavam-se avós e bisavós, meus amigos eram tios, toda a gente envelhecia um pouco para acolher a nova criança. Era preciso estar atenta para ver que, se o mais antigo manifestava como nunca os seus vícios e dores, era porque vivia, pela aproximação do radicalmente novo, a possibilidade da sua renovação. Na experiência interior, esses movimentos aconteciam sem interrupção; com o sonho, eu era lembrada de que viveria isso no amplo círculo dos meus contemporâneos. Sabia que a vinda da minha bebê viria a operar em nós de modos imprevisíveis e, inspirada pela sua luminosidade, exercitava a minha confiança. O sonho me ensinava que ela, em breve, iria nascer, tornar-se novidade no mundo. 

O nascimento

Algumas semanas antes do parto, tive uma visão: vi-me como uma pomba enorme, que girava na clareira de uma floresta. Tinha uma pata fincada no chão, tesa e leve; girava todo o corpo sobre este eixo, impulsionada pela outra pata que, nesse movimento, selecionava gravetos e folhas que empurrava para o centro. Escutei o testemunho de algumas mulheres sobre o parto e a imagem de uma força selvagem a fazer seu ninho não estava distante do que elas afirmavam. Esta visão me acompanhou por alguns dias, junto com a sensação de que se aproximava uma experiência violenta e sagrada.

Poucos dias depois, meus lábios incharam, minhas pernas e pés também, e intuí que precisaria acolher o desconforto para despedir-me da gravidez. Talvez tenham sido estes os primeiros sinais de que meu corpo começava a abrir-se, invertendo o movimento dos últimos meses (a gravidez foi uma experiência de concentração, como se uma espiral de energia centrípeta tivesse o seu vértice no meu umbigo). O corpo se abria e eu recolhia-me, enquanto sentia-me a despedir-me — da barriga, da gravidez e da mulher que eu era, do modo como vivia o tempo e as relações. Sabia que outra vez, tal como havia acontecido quando soube que estava grávida, tudo seria invadido por um movimento de metamorfose vertiginoso e profundo, mágico e cotidiano. Estava envolvida pelas transformações do corpo e observava também a atmosfera sutil onde elas ecoavam. Buscava não temer, observava as pessoas na rua e via que todas elas tinham nascido, tinham saído da barriga de uma mulher sem saber para onde iam, tinham sido, de algum modo, acolhidas no mundo. Era assim com toda a gente, tinha sido assim comigo, seria assim com a minha bebê. 

Com a barriga imensa, tive outro sonho. Estava numa espécie de arena com centenas de mulheres grávidas. Uma de cada vez erguia-se no centro da roda e ali recebia uma chuva de ouro e água, enquanto a multidão torcia por ela, gritando seu nome e enviando-lhe bênçãos. Eu estava entre a multidão e torci para muitas mulheres e seus bebês, desejando-lhes saúde e alegria. De repente, senti-me novamente tímida e recuei ao ver que a minha vez se aproximava. Afligia-me estar no centro da arena e arrepiava-me pressentir a intensidade das bênçãos que me seriam destinadas através das águas, do ouro, das vozes. Precisei de um instante de preparo e corri para um camarim. Diante de um espelho, lavei o rosto, olhei-me nos olhos, pintei um dos cílios e voltei para a arena. Quando senti as primeiras gotas d’água e ouro caírem no meu corpo, acordei. Era um sonho intenso e ainda de olhos fechados lembrei-me de Oxum, rainha do ouro e das águas doces, orixá que acompanha, guarda e protege as mulheres no parto. Rezei para que ela me acompanhasse e me abençoasse.

Blanchot escreveu que a metamorfose acontece “pouco a pouco, embora imediatamente”, e foi o que senti quando começaram as dores do parto. Eram dores ritmadas, que se intensificavam pouco a pouco. Foi preciso reinventar a resposta à dor — não recusar, não prender, não tensionar, porque isso fazia doer ainda mais (talvez por contrariar o movimento de abertura do corpo). Busquei sentir dor e relaxar, sentir medo e descontrair, sentir o rosto do desconhecido a cravar os olhos nos meus e acolher — foram poucos os rituais durante os quais vivi essas sensações, nunca tão radicalmente como no parto. As horas que se seguiram, como lembro agora, passaram num instante. Testemunhava a força do nascimento que operava em mim, respirava, buscava movimentos que ajudassem o corpo a abrir-se, e exercitava-me na entrega sem reservas àquele ritual de despossessão. As contrações intensificam-se conforme a dilatação aumenta, e busquei uma economia de energia que me ajudasse na longa duração: movia-me conforme o necessário durante cada contração, descansava nos intervalos. Esse exercício durou algumas horas, e via a força do nascimento (da bebê e da mulher que se tornava mãe) a empurrar meus ossos, alterar meu estado de consciência, dilatar minhas membranas, convocar meu espírito a presentificar-se. A natureza mostrava sua inteligência, arrancava-me gemidos e me exigia confiança. 

Quando comecei a sentir vontade de empurrar a bebê, quando as contrações já haviam atingido o seu auge e começavam a suavizar, quando ela já estava com a cabecinha encaixada para sair, quando parecia que estava quase a acabar, senti que talvez não conseguiria. Quem me acompanhava pedia que eu fizesse força, que aproveitasse a duração da contração para expulsar a bebê e eu, depois de tanto tempo, já não sabia onde encontrar força, nem distinguia propriamente as contrações e os intervalos. Durante a gravidez, imaginei que no parto talvez seria preciso cruzar um limite íntimo, inventar um caminho para lá do que me parecia possível. Para mim, isso não aconteceu pela intensidade da dor, mas acontecia agora, durante a expulsão da bebê, e por exaustão. Foram algumas horas de esforço e eu cada vez mais fraca, até que quase desisti. O que seria desistir? Quase pedi que a bebê me fosse retirada de alguma outra maneira; no meu delírio, perguntei se haveria modo de descansar antes de continuar e, claro, me disseram que não. O nascimento não recua! 

Talvez tenha sido nesse momento que qualquer coisa em mim morreu, e se digo qualquer coisa é porque não sei o que foi, algo morreu de uma vez para sempre, nessa despedida, queimou sua imagem (intuo que se tratava da minha própria imagem naquele instante, da qual não posso sequer recordar). Continuava a escutar que o melhor seria encontrar força, uma concentração de força contínua e intensa. Respirei e procurei em mim onde haveria aquela força. Lembro-me de errar, com o máximo de atenção, por cada parte do meu corpo (cabeça, peito, braços, estômago) e de não encontrar nada, até que, num momento, encontrei um grão luminoso, um quase nada. Nutri-me desse grão e foi com ele que retomei as forças. Sentia a bebê perto e, se algo morrera, em mim já havia o que desejava ardentemente nascer — respirei, empurrei, senti as peles da vagina a rasgarem-se, ela nasceu.