[N.19 | 2023]

A ira da filha de cam continua

Daisy Serena

A ira da filha de cam

parece perda de palavra

que
mucama

num é quem ama

é qual a
mulata

bicho que se quer
domesticado

nos quintais das
fazendinhas

projeto
colonial
e sanha?

ou tu me diz
que é sina?

eu daqui do
doismilevinte

não sabia que
minha cria
não era minha

esse leite só podia
ser de aia

ou qualquer outro
palíndromo
servil

inda que seja
servir ao
projeto

esclarecido

que num é
meu é do
racismo

creditando no
meu filho

uma conta
‘redentora’

d’uma pretitude
que nunca se quis
extinguir.

:
parece perda de palavra
só que é muito mais.

A ira da filha de cam continua

sobre botar o incômodo e o silêncio para jogo

meu filho é quem mais me ensina sobre racismo e antirracismo. não consigo formular, ainda, extensos escritos sobre algo que me toca em um ponto tão nevrálgico. no entanto, consigo, finalmente, partilhar uma reflexão sobre um tipo de crueldade com mulheres negras ativistas pouco ou nada falado: o temor de ter uma cria branca quando você engravida de uma pessoa não negra. passei a gravidez inteira analisando ultrassons, o nariz igual ao meu, a boquinha bicuda, fazendo análise de cor da família do pai e minha (só minha, pois, sendo adotada, não tenho o registro de minha linha genealógica, ancestral, e todo esse buraco esquisito que fica na gente, somado ao buraco histórico violento, enquanto povo arrancado de sua terra).

após o nascimento do acauã, inegavelmente um bebê branco, passei meses pensando como ele e eu seríamos recebidos nos meus espaços afetivos de luta preta. toda vez foi uma surpresa – comovente e amorosa – a alegria com que minhas amigas e amigos pretxs nos recebiam. mas também essa surpresa traz o peso de toda-vez-ter-que-ser-uma-surpresa. me parece óbvio que isso se deve ao fato de que é muito difícil com o nosso histórico traumático de rejeição estrutural em todos os níveis – do afetivo ao mercado de trabalho – que, mesmo tendo uma preparação teórico-discursiva sobre “estrutural não é individual”, nós ainda sentimos muitas críticas estruturais como um dever pessoal; quando sabemos racionalmente que estrutura só se muda a médio-largo prazo coletivamente.

ter um filho branco de olhos azuis nunca passou por qualquer nível de desejar me embranquecer, assim como não me fez “fazer as pazes” com a colonialidade (vamos combinar que nem refazendo a história isso é possível). também não me fez ser uma mãe tranquila e aliviada, muito pelo contrário, passo dias pensando na disparidade absurda de uma mãe negra de filho negro ter que conviver com o terror do medo de perder seu filho para um sistema racista homicida. também passo dias pensando em como educar essa criança, para que ela saiba que uma criança negra terá experiências e obstáculos que ele não terá porque se esqueceu de passar no corredor da melanina. passo dias pensando como não acabar com a autoestima do meu filho, mas também que ele saiba que ter olhos azuis (comentado toda vez que coloco o pé na rua) não significa absolutamente nada além de uma combinação biológica.

ter um filho branco me ensina na prática da carne viva que o racismo é completamente construído e que as crianças vêm pagando uma conta que não é delas. ter um filho branco me ensina que o racismo não perdoa e você pode estar amamentando na rua, com o seu peito na boca do seu filho, e uma pessoa branca vai se achar na liberdade de perguntar se você é a mãe dessa criança (como me perguntam toda semana quando saio com ele: e escrevi aquele poema sobre isso: a ira da filha de cam).

foi preciso quase três anos de mãe e filho para que eu alcançasse alguma paz, para que eu não me envergonhasse dentro das militâncias de ter “furado” com os desejos, ainda latentes e existentes, de um legado preto, de um futuro preto vivo. vivo. vivo.

foi preciso quase três anos para colocar na ponta da palavra alguma forma de dizer serena, para fazer valer todas as leituras de lélia gonzalez, audre lorde, bell hooks, tatiana nascimento.

refazendo, o lixo vai falar, e numa boa. aprendendo a fluir com as águas para não afogar no silenciamento. fazendo do amor uma ação presente fora do clichê, curando os traumas ao deixar as feridas curtindo na boca do tempo, mas também através da nossa palavra preta, da palavra de uma mãe preta, da palavra de uma mãe preta de um filho branco.
que existe também.