[N.93 | 2023]

A segunda cobra

Lizzie Simon

Uma noite, no começo de abril, num dia especialmente irritante do décimo terceiro mês vivendo la vida lockdown, no bosque do norte do estado de Nova York, cheguei em casa com minhas filhas, de três e seis anos, e encontrei meu marido, Eric, com uma expressão estranha. Ele estava desamparado? Atônito? Não estava claro, e quando lhe perguntei O que foi, desta vez?, ele falou que tinha acabado de ver duas cobras rastejarem para dentro de nossa casa pela porta aberta da cozinha.

Nossa casa, que foi projetada e construída por ele antes de nos conhecermos, é pequena e em plano aberto no primeiro piso, feita principalmente de materiais reaproveitados. O teto tem inclinações estranhas e é feito de tábuas de madeira descartadas de um bar em St. Marks Place. As portas do quarto são folhas de compensado que não abrem e fecham, mas rolam para frente e para trás. Se você gosta de uma casa feita à mão, cheia de detalhes inesperados, você adoraria a nossa casa. E se você fosse uma cobra que quisesse rastejar livremente para encontrar corpos quentes ou restos de comida, provavelmente adoraria também.

Acontece que não há muito o que fazer para tirar uma cobra de dentro de uma casa. Eric pesquisou no Google, tentou descobrir se cobras venenosas são comuns onde moramos (não muito) e comparar as cobras que ele viu – 60 centímetros de comprimento, marrom claras, da grossura de uma mangueira de jardim – com as imagens da internet. Espalhei armadilhas de cola para ratos, estremecendo, imaginando, e Eric borrifou uma linha espessa de produto de limpeza onde a cozinha se torna a sala, supondo, esperando, que nossas novas companheiras de casa evitariam o cheiro e ao menos ficariam confinadas numa área.

Seguimos com nossa rotina noturna. O que mais poderíamos fazer? Estávamos os dois exaustos. Christine, a babá das meninas, não tinha aparecido pela segunda vez em uma semana. Também não tinha respondido às nossas ligações ou mensagens até o meio dia, quando escreveu avisando que não estava se sentindo bem e que podia estar com Covid.

Nós estávamos aterrorizados pela Covid, talvez mais do que outros pais, porque tínhamos visto nossa filha mais nova entrar em choque cardiogênico depois de pegar um vírus comum aos nove meses de idade. Ela nasceu com duas doenças cardíacas raras — duas cobras na casa —, uma relativa aos batimentos, que poderia causar morte súbita, e a outra a uma fraqueza nas contrações de seu coração.

Ela fez uma cirurgia cardíaca para implantação de um marcapasso no dia em que nasceu, e seu primeiro ano de vida foi aterrorizante, uma cascata de especialistas que davam informações extenuantes, cada conversa como um taco de beisebol na minha cabeça. Eu seguia numa espécie de névoa, me adaptando sem entender muito bem, algumas vezes maravilhada com a sua resiliência e a sua fofura, mas com mais frequência esgotada e irritadiça. Alguma parte de mim estava sempre se preparando para uma emergência, até que o meu coração – não o literal, mas aquele sobre o qual falamos em canções de amor – ficou destruído.

Quando emergi, em seu segundo ano, outras coisas voltaram ao foco. Eu tinha uma filha mais velha para criar e um casamento para não arruinar. O que acabou sendo o melhor para todos nós foi eu colocar mais foco em mim: minha criatividade, minha carreira, meu corpo. Isso não curou a minha filha, mas tornou minha vida administrável novamente e, depois de um tempo, minhas relações floresceram de maneiras inesperadas, o que aumentou a harmonia da nossa casa.

Tivemos um longo intervalo sem emergências e, então, veio a Covid. Como outras bilhões de pessoas, afundamos no trauma da situação. Mas percebi, talvez pela primeira vez, que em nossa provação, nossa família tinha adquirido habilidades para lidar com as dificuldades. Estávamos, de uma forma estranha, preparados.

Até que, depois de quatro meses de pandemia, minha filha teve uma série de crises cardíacas e foi preciso implantar um Cardioversor desfibrilador implantável [CDI] em seu corpinho, para desfibrilar seu coração automaticamente caso acontecesse outra crise. Tudo isso foi no mínimo tão angustiante quanto parece, mas a cirurgia correu bem, e ela ficou mais segura do que nunca. Talvez duas vezes mais segura? Os médicos não podiam precisar. Essa coisas não podem ser medidas. Ela está sempre em risco. E meu cérebro não consegue calcular exatamente o que é reduzir pela metade esse tipo de perigo.

Ter uma criança frágil em casa pode nos tornar medrosos, mas, para ser honesta, não foi terror o que senti quando recebi as mensagens vagas de Christine. Pensei que ela provavelmente estava mentindo. A pessoa que contratamos para cuidar de nossas filhas já tinha mentido diversas vezes nas semanas anteriores e era geralmente alérgica a orientações e limites. Nós continuávamos dando chances a ela porque é difícil encontrar alguém que cuide bem de crianças durante uma pandemia no norte do estado de Nova York. Ela era a nossa quinta babá em seis meses.

Mas lá estava eu, tremendo de medo da perspectiva de ter que procurar uma nova babá, e agora responsável por cuidar minhas filhas por um futuro indeterminado. O que uma mãe pode fazer? Postei uma oferta de emprego num site de cuidadores e levei as crianças para a Target. Enquanto dirigia, ensaiei silenciosamente como dispensaria Christine, usando uma linguagem cada vez mais inatacável, enquanto meu carro passava pela saída da Target. O estresse é desorientador, faz mal ao cérebro. Comprei para as meninas mais bichos de pelúcia que elas não precisavam e, do estacionamento, dispensei Christine por mensagem. Por alguns maravilhosos segundos, me senti vitoriosa, como se tivesse me vingado do próprio caos.

Mas eu não tinha. E logo eu me afogava no arrependimento e na vergonha de ter permitido que uma pessoa tão problemática cuidasse das minhas filhas, de ter fracassado na função fundamental de prover a elas um cuidado consistente.

Mas não havia tempo para sentimentalismo. Antes de sairmos do estacionamento, eu já estava marcando entrevistas com duas possíveis babás na manhã seguinte. As duas se chamavam Linda e eu sabia que isso confundiria ainda mais as minhas filhas já confusas. A de três anos chamava Christine de Nancy, que foi a babá número dois. Na verdade, ela chamava todas elas de Nancy, uma resposta sã ao caos total da minha troca de babás a cada poucas semanas.

Naquela primavera, as coisas começaram a se acalmar. Contratei uma das Lindas, que era querida, confiável, responsável, razoável e pontual. Ela, meu marido e eu tomamos nossa primeira dose da vacina, e depois a segunda. O que significava que o risco de Covid na nossa família estava reduzido pela metade, se é que se pode medir significativamente tal coisa, o que não consigo. O perigo agudo é bem mais inteligível do que o perigo decrescido.

E então, numa noite, fui à cozinha e vi a cobra rastejando atrás do forninho. Dei uma vassoura ao Eric que, com algumas rápidas vassouradas, moveu o forninho, varreu a cobra e a manobrou para fora da nossa casa. Menos graciosamente, ele saltou para fechar a porta. Ela queria voltar, ele disse.

E assim, reduzimos nosso problema com cobras pela metade. Será? Podemos medir tal coisa?

Ainda não achamos a outra cobra. Só penso sobre isso ocasionalmente e, quando penso, minha voz interior diz: ela pode ter saído por conta própria e, mesmo se não saiu, ela provavelmente não é venenosa. Eu só ocasionalmente penso sobre a fragilidade da minha filha também, porque isso me deixa completamente destruída. Tendo eliminado os riscos que eu podia eliminar, vivo com a segunda cobra.