[N. 117 | 2024]

Açúcar queimado [fragmento]

Avni Doshi

Prendo cartões brancos com nomes e números de emergência escritos em letras maiúsculas na parede acima do telefone de Ma. A pintura está descascando e alguns dos cartões flutuam até o chão. Persisto. Ma está sentada no sofá, me observando. Coloca a mão no meu traseiro e a move em um movimento circular áspero.

— Você vai ter um bebê.

Olho para ela.

— Não vou, não.

— Em breve, muito em breve.

— Acho que não. Não estamos prontos.

— Eu sei que vai. Vi num sonho.

Ela tem falado muito sobre seus sonhos recentemente. Comigo, com os vizinhos, com as pessoas na rua. Aparentemente, aconselhou o vigia a colocar seus negócios em ordem. Ele interpretou isso como uma ameaça e agora se recusa a abrir o portão para o meu carro quando eu a visito.

— Você já tem tanto aqui — ela diz, a mão ainda no meu traseiro. Parece que está tentando apagá-lo. — E ainda nem teve filhos.

Eu não respondo.

Ela continua.

— E está sempre fazendo regime.

— Todo mundo está sempre fazendo regime.

Ela balança a cabeça.

— Eu nunca faço regime. E na sua idade? Na sua idade eu comia biscoitos Parle-G untados com manteiga branca.

Sinto um calafrio. Já fiz isso, espalhei manteiga nos biscoitos e comi aos montes, delirante e apressada, com medo de ser pega em flagrante pelas freiras do internato depois de termos invadido a despensa no meio da noite. O gosto continua ilícito para mim, algo engolido depressa demais, algo que corre o risco de voltar pela garganta, algo que foi direto para o meu cérebro, que estava sempre nebuloso, privado de gordura, me obrigando a sair à deriva pelo espaço.

Ma não sabe. Nunca disse a ela que durante uma parte da minha infância eu estava sempre com fome e desde então venho buscando um pouco de saciedade. Falar nunca foi fácil. Ouvir também não. O que éramos uma para a outra sofreu um colapso em algum momento, como se uma de nós não estivesse cumprindo sua parte do acordo, defendendo seu lado. Talvez o problema seja o fato de estarmos do mesmo lado, olhando para o vazio. Talvez estivéssemos famintas pelas mesmas coisas, e nos somarmos apenas duplicou esse sentimento. E talvez seja isso, o buraco no coração da questão, uma deformidade da qual não temos como nos recuperar.

Na cozinha, posso sentir o cheiro de algo azedo, algo fermentando. Dentro de uma panela aberta ao lado da pia há uma montanha de feijões-mungo amarelos de molho na água. Os grãos estão derretendo, se dissolvendo, brancos e borbulhantes. Pergunto à minha mãe há quanto tempo o dal está de molho. Ela caminha devagar até a cozinha e espia dentro da panela. Sua cabeça está parada, mas seus pensamentos correm em círculos nos últimos dias, o loop permanecendo irreconhecível a cada passagem.

Empurro a panela para dentro da pia e abro a torneira. A água no metal soa como ondas quebrando.

Minha mãe inclina a cabeça e me olha, como se eu tivesse voltado depois de muitos anos longe.

— Você está diferente — ela diz.

Rachaduras originadas em outro apartamento sobem pela parede, brotando em plena floração no canto do meu estúdio. Há dias em que os vizinhos me reconfortam e há dias em que a proximidade parece perigosa. Se as rachaduras viajam, eu me pergunto o que mais consegue passar pelas paredes. Umidade, vozes. Às vezes, enquanto gritamos um com o outro, imagino os vizinhos do outro lado pressionando as orelhas contra o gesso. Ou talvez eles se sentem no sofá lado a lado e observem os sons invadirem seus cômodos, sons que quase tomam forma, mudando de peso.

É uma luta permanecer presente onde quer que eu esteja, porque minha mente viaja no tempo e no espaço, não apenas até o passado e o futuro, mas também até as casas que nos cercam neste condomínio, até os corpos que habitam esta cidade. Quando vejo gráficos populacionais, o país parece uma confusão de gente, os números enviesados na direção dos jovens e dos famintos, e imagino todos eles logo ali, do lado de fora, subindo uns sobre os outros até encontrarem seu caminho por uma janela aberta, um alçapão ou mesmo uma rachadura, e estão todos aqui comigo, ou por perto, avançando, suando, gritando, balindo, relinchando, às vezes um mar de branco, às vezes de cor, e eu sinto a ameaça junto à minha nuca, mesmo que Dilip e eu continuemos nossa discussão sobre que tipo de mobília caberia no estúdio.

Na loja de departamentos, olhamos para uma cama de solteiro com uma etiqueta vermelha de liquidação ampliada e esticada ali em cima como um lençol. A cama vai servir para minha mãe e não ocupará muito espaço no quarto, mas Dilip se pergunta se no futuro não iremos nos arrepender de não termos comprado uma cama maior.

— Por que nos arrependeríamos? — pergunto, embora já consiga pensar em vários motivos, e decidimos ficar com a pequena cama por enquanto, adiando o remorso para o futuro em vez de administrá-lo no momento, porque, afinal, quem sabe por quanto tempo vamos morar neste apartamento?

Dilip acrescenta: Quem sabe por quanto tempo precisaremos de um espaço para fazer arte, ou por quanto tempo viveremos na Índia, ou por quanto tempo ainda viveremos? E embora ele considere essas perguntas animadoras e cômicas, elas me enchem de irritação. Ficamos na fila para pagar nossa cama nova e me imagino morando longe da única casa que conheci, morrendo numa terra estrangeira, até que o vendedor que registra nossa compra pergunta se a cama é para nosso filho.

— Não — eu digo. — É para a minha mãe.

— Não vou conseguir dormir neste depósito — diz minha mãe, olhando em volta para os livros e gavetas e as caixas no canto empilhadas uma sobre a outra.

Enrolo as cortinas claras e finas em torno de si mesmas com um nó e elas balançam suavemente. A janela do meu estúdio dá para uma piscina que ninguém no prédio parece usar. Penas e folhas em decomposição se fundem numa massa de terra na superfície da água e tudo parece mais sujo do que o normal.

— Posso tirar tudo do quarto — digo, ainda olhando lá para fora.

— Não, não. Não precisa.

Ela não diz mais nada, mas sinto que está pensando: Não vou ficar aqui por muito tempo. Não discutimos se este é um teste para um evento iminente ou uma festa do pijama para adultos, e acho que seria melhor que ambas continuássemos com nossas ilusões separadas. Mas quando a pequena sacola de lona que ela trouxe se abre e descobrimos que esqueceu sua escova de dente, seus remédios, roupas de baixo e camisola, percebo que pelo menos uma de nós precisa estar lúcida e talvez o tempo para as minhas ilusões já tenha passado.

Estou sozinha no carro no caminho de volta ao apartamento de Ma para pegar suas coisas e fico presa como a fita de um cassete, sem saber como prepará-la para se despedir e qual a melhor maneira de fazê-lo. Porque temos que compreender o propósito desse fim tanto quanto ela, mesmo que seja difícil de registrar, já que ela ainda estará lá quando voltarmos no dia seguinte, sem parecer ou agir diferente do dia anterior. Esta é uma perda longa e prolongada, durante a qual se perde um pouquinho de cada vez. É possível, então, que não haja outra coisa a fazer além de esperar, esperar até que ela não esteja mais lá dentro da sua concha, e o luto possa acontecer depois, um luto cheio de pesar porque nunca tivemos um encerramento verdadeiro.

O interior do seu apartamento beira a catástrofe, evitada pelas apáticas tentativas de Kashta de mantê-lo limpo, mas ela também sabe que sua patroa não está bem e toma certas liberdades quando pode. Me pergunto como vou amar Ma quando ela chegar ao fim. Como poderei cuidar dela se a mulher que conheço como minha mãe não estiver mais morando no seu corpo? Quando ela não tiver mais plena consciência de quem é e de quem eu sou, será possível para mim cuidar dela como faço agora, ou serei negligente, como somos com crianças que não são nossos filhos, ou animais sem voz, ou com os mudos, cegos e surdos, acreditando que vamos nos safar, porque a decência é algo que representamos em público, com alguém para testemunhar e avaliar nossas ações, e se não houver o medo da culpa, qual seria o sentido?

Os sutiãs esfarrapados e remendados estão numa gaveta com suas calcinhas. Pego todos eles.

— O que você está fazendo?

Eu me viro. Kashta está parada na porta, coçando o couro cabeludo com o dedo médio.

— Estão rasgados. Quero jogar fora.

Kashta muda a posição do corpo.

— Eu posso levar.

Eu tinha planejado jogar fora muitos deles, junto com uma pilha de revistas que tenho certeza de que Ma não lembrará. Mas Kashta me observa, a mim e ao arame exposto nas minhas mãos. Entrego os sutiãs e o segredo está seguro. Espero que essa troca passe despercebida, a menos que Ma comece a suspeitar que Kashta está roubando dela. Talvez ela fique aliviada que aquelas coisas miseráveis das quais não conseguia se livrar finalmente se foram.

— Não deixe aqui no apartamento — digo a Kashta ao sair.

Quando chego em casa, o clima mudou com a ajuda do crepúsculo e do uísque. Ma dá goles vigorosos num copo frio. Há anéis de condensação sobre todas as superfícies. Dilip ergue os olhos quando eu entro.

— Quer tomar alguma coisa? — pergunta, erguendo seu próprio copo para que os cubos de gelo batam uns contra os outros.

Faço que não com a cabeça.

Ma trocou de roupa e colocou um vestido que me dou conta de que é meu. O tecido de algodão estampado aperta seu torso pesado, transformando seus seios numa única unidade. As mangas cortam suas axilas. Ela está começando a suar. Os botões nas costas do vestido mal se prendem aos buracos e, quando me sento ao lado dela no sofá, posso ver pedaços cremosos de pele que nunca viram o sol.

— Ma, por que você está usando meu vestido?

Ela olha para mim e depois para Dilip. Ele pisca os olhos e minha mãe começa a rir, ainda olhando para ele.

— É meu vestido — diz ela.

— Não. Não é. Não cabe em você.

Ela encolhe os ombros o melhor que pode dentro das minhas roupas.

— Eu tenho um igual. Dilip está espiando seu copo, evitando contato visual conosco, embora ambas pareçamos estar olhando para ele, talvez esperando que seja o árbitro. Ele deve estar se perguntando se é assim que seremos em breve, se é assim que todas as noites vão se passar. O que estará procurando em seu copo? Talvez uma saída.

Pego a bolsa com a qual entrei e tiro dali um roupão. Ma o ignora quando eu o estendo para ela e pega uma revista da mesa de centro com a mão livre. Vira algumas páginas sem olhar para mim e depois zomba.

— Olhe só para isso — diz ela.

Sua voz está murchando. Dilip se inclina para frente.

— Pequenas marcas, aqui e em toda parte. O que é isso, uma perna?

Ela encontrou uma pequena passagem no texto onde eu desenhei um rabisco que é de alguma forma tão ofensivo que ela não pode deixar passar.

— Parece mesmo uma perna? — ela pergunta a Dilip. — Este é o hábito dela desde a infância, você sabe. Desenha em tudo. Não pode deixar nada como está. Foi uma das maiores reclamações quando foi para o internato. Acho que é realmente a razão pela qual a expulsaram. O que aquela freira disse? Sua filha desfigura tudo em que põe as mãos. Você acredita nisso? Eles a expulsaram da escola por causa disso.

O olhar de Dilip me encontra e viaja até a pequena cicatriz na minha mão. Ele pigarreia.

— Ela tem talento para isso — diz, continuando a falar como se eu não estivesse ali. — Era a vocação dela, pense dessa maneira.

Ma se joga para frente e ri e sua testa quase toca o vidro. Seu cabelo cai na frente dos olhos quando ela se vira e olha para mim.

— O talento dela é ser estranha. Fazia coisas estranhas quando criança e agora também, como mulher. Que tipo de arte estranha você faz? O mesmo rosto, dia após dia. Que tipo de pessoa faz uma coisa tão idiota?

— Ma — Dilip começa a dizer —, acho que deveríamos…

— Tenho que explicar quando as pessoas me perguntam e não sei o que dizer. Sinto vergonha.

— É disso que você sente vergonha? — eu choro. Minha boca treme. Essa pessoa, que nunca fez algo que valesse a pena na vida, acha que sou uma vergonha?

— Por que você simplesmente não me diz quem é? Quem é a pessoa na foto? — seu rosto se encolhe e seus olhos estão transtornados.

— Já disse um milhão de vezes — falo com os dentes cerrados. — A pessoa é quem quer que você veja, e todo mundo vê alguém diferente. A imagem original não importa mais. Era a foto de um estranho e agora eu a perdi.

Ma põe a mão num dos lados do rosto. A mão migra para a testa e seus olhos se fecham.

Dilip pigarreia e termina o que resta em seu copo.

— Ma, você está pronta para o jantar? — ele pergunta.

Ela abre os olhos e o observa, a boca formando uma linha dura, e então se levanta, devagar, morosa, de modo que por um momento não temos certeza se está de pé ou caindo. Com compostura, ela balança a cabeça.

— Quero me deitar um pouco.

Eu a vejo sair da sala, copo na mão, e sinto que não consigo respirar. Cada parte de mim quer lhe fazer mal, arrancar minhas roupas das suas costas e humilhá-la. Enterro o rosto nas mãos e, quando enfim sinto que posso suportar a luz, me volto para Dilip. Ele está me observando, inclinado para a frente com os cotovelos apoiados nos joelhos. Sei o que ele vai dizer. Como é possível ela morar com a gente? Como podemos deixar essa criatura horrível envenenar a nossa casa?

— Esses desenhos realmente a incomodam — ele diz.

Sinto minhas sobrancelhas franzirem. Engulo em seco e tento dar de ombros.

— Você ainda quer continuar — ele diz —, mesmo que a incomodem tanto?

Ouço minha pulsação nos meus ouvidos. Cruzando as mãos, olho para meu colo.

— Não passei tempo suficiente tomando decisões baseadas nela?