[N.36 | 2023]

Argonautas [fragmento]

Maggie Nelson

2011, o auge das nossas mudanças corporais. Eu grávida de quatro meses; você usando T há seis. Nós, verdadeiros poços de hormônio, resolvemos passar uma semana num Sheraton na praia de Fort Lauderdale, bem na época das monções, para que você retirasse os seios com um bom cirurgião e se recuperasse. Menos de 24 horas depois de chegarmos, eles já lhe enfiaram uma touca cirúrgica na cabeça – um “chapéu de festa”, disse a enfermeira, gentil – e a levaram embora, empurrando a maca. Enquanto você enfrentava a faca, eu tomava um chocolate quente empelotado na sala de espera e via Diana Nyad tentando ir da Flórida até Cuba a nado. Ela não conseguiu na época, mesmo usando jaula de proteção contra tubarões. Mas você conseguiu. Apareceu quatro horas depois, dopado, engraçadíssimo, tentando em vão dar uma de dono da festa enquanto sua consciência ia e voltava, as faixas no torso muito mais apertadas do que quando você as enrolava, um dreno pendurado de cada lado, duas bolsas que não paravam de encher com um líquido avermelhado parecendo Ki-Suco de cereja. 

Para economizar dinheiro durante a semana, cozinhamos no banheiro do hotel num fogareiro elétrico. Um dia fomos a uma Sport Chalet e compramos uma pequena barraca para montar na praia, porque o aluguel das cabanas era caro demais. Enquanto você dormia, caminhei tranquila até a praia, montei a barraca e tentei ler A Dialogue on Love, de Sedgwick. Mas parecia que eu estava dentro de uma sauna de nylon – nem eu nem meu feto de quatro meses conseguimos suportar. Minha barriga já estava aparecendo, o que era adorável. Talvez haveria um bebê. Uma noite ostentamos todo nosso jeito sóbrio de ser e pagamos oito dólares em daiquiris de morango sem álcool, que tomamos na piscina de borda infinita, que estava lotada de europeus passando férias com pacotes baratos. Estava quente, e o céu estava cor de lavanda por causa da tempestade que se aproximava. Sempre havia uma tempestade se aproximando. Moças e rapazes de irmandades estudantis se amontoavam em qualquer bar que vendesse peixe frito ao longo do calçadão. A multidão era barulhenta, repulsiva e meio assustadora, mas contávamos com a proteção do nosso campo de força. No terceiro dia, fomos de carro ao segundo maior shopping do mundo e andamos durante horas, ainda que o calor sufocante e o início da gravidez me deixassem zonza e exausta, e você ainda estivesse chapado de Vicodin. Entrei na Motherhood Maternity e experimentei algumas roupas usando aquelas barrigas postiças que eles emprestam para a gente ver como vai ficar dali a uns meses. Usando a barriga, experimentei um suéter branco e felpudo de lã com um laço no centro do peito, daqueles que fazem o bebê parecer um embrulho de presente. Comprei o suéter e acabei usando-o em casa o inverno inteiro. Você comprou uma calça de moletom da Adidas que ficou bem sexy. O tempo todo esvaziávamos seus drenos em copinhos descartáveis e despejávamos o líquido no vaso sanitário. Eu nunca tinha te amado tanto quanto amei naquela época, com seus drenos de Ki-Suco, sua coragem de passar por uma cirurgia para ter uma vida melhor, uma vida de vento batendo na pele, seus cochilos no hotel em cima de uma montanha de travesseiros para não incomodar os pontos. “O sono do rei”, dizíamos, em homenagem ao primeiro filme que vimos naquela semana pelo pay-per-viewO discurso do rei

Depois, no conforto da nossa cama Sheraton Sweet Sleeper®, assistimos a X-Men: primeira classe. Em seguida, debatemos: assimilação vs. revolução. Não tenho lá tanta afinidade com a assimilação em si, mas, no filme, os assimilacionistas defendiam a não violência e a identificação com o Outro naquele jeito budista meio corrompido que sempre me pega. Você parecia concordar com os revolucionários, que argumentavam: continue fora dos padrões e acabe com eles antes que eles acabem com você, porque não importa o que disserem, a verdade é que eles querem a sua morte, e você se engana se pensar o contrário. 

Professor: Não consigo parar de pensar naquelas pessoas, em todas as mentes que toquei. Consegui sentir o isolamento, as esperanças, as ambições. Nós podemos dar início a algo incrível, Erik. Nós podemos ajudá-las. 

Erik Lehnsherr: Podemos? Identificação, tudo começa com ela. Depois acabamos presos, usados como cobaias e executados. 

Professor: Preste bastante atenção, meu amigo: matar Shaw não vai te deixar em paz. 

Erik Lehnsherr: A paz nunca foi uma opção. 

Conversamos amistosamente, mas de alguma maneira nos deixamos cair numa dicotomia desnecessária. Isso é o que tanto odiamos na ficção, ao menos na má ficção – ela pretende oferecer situações para pensarmos questões complexas, quando na verdade tem posicionamentos predeterminados, enche a narrativa com falsas escolhas e nos engancha a elas, obscurecendo nossa percepção e nossas saídas

Enquanto conversávamos, usamos palavras como não violência, assimilação, ameaças à sobrevivência, preservação da esfera radical. Mas, quando penso nisso agora, só me lembro do nosso murmúrio de fundo tentando explicar alguma coisa, entre nós e para nós, sobre as experiências que tínhamos vivido até ali neste planeta arrasado e ameaçado. Como costuma acontecer, nossa necessidade de nos fazermos entender era tão intensa que distorceu nossas opiniões, nos jogou de volta dentro do cárcere. 

Vocês querem ter razão ou querem se relacionar?, perguntam os terapeutas de casais. 

O objetivo não é responder perguntas, é sair, sair disso. 

Numa outra ocasião, trocando os canais da TV, paramos num reality show sobre uma mulher que se recuperava de uma mastectomia dupla depois de um câncer de mama. Foi estranho vê-la realizar as mesmas ações que realizávamos – esvaziar os drenos, esperar pacientemente o dia de tirar as ataduras –, mas com emoções opostas. Você se sentia aliviado, eufórico, renascido; a mulher na TV tinha medo, chorava e sofria. 

Na nossa última noite no Sheraton, no restaurante Dos Caminos, um restaurante “mexicano casual” supervalorizado que ficava dentro do próprio hotel, você se passa por homem; eu, por grávida. O garçom fala alegremente da própria família, demonstra encanto pela nossa. Por fora, era como se seu corpo estivesse ficando cada vez mais “masculino”, e o meu, cada vez mais “feminino”. Mas não era essa nossa sensação interna. Por dentro, éramos dois seres humanos passando por transformações um ao lado do outro, testemunhas tácitas um do outro. Em outras palavras, estávamos envelhecendo.

Muitas mulheres descrevem a sensação de um bebê lhes passando pela vagina como a maior cagada de suas vidas. O que não é realmente uma metáfora. A cavidade anal e o canal vaginal se apoiam uma no outro; eles também são o sexo que não é um. A constipação é uma das principais características da gravidez: à medida que cresce, o bebê literalmente desfigura e pressiona o intestino, mudando a forma, o ritmo e a plausibilidade das fezes. No final da gravidez, fiquei maravilhada ao descobrir que minhas fezes, depois de finalmente surgirem, tinham forma de bola de árvore de Natal. Depois, durante todo o trabalho de parto, eu não conseguia evacuar de jeito nenhum, como se tivesse plena certeza de que, ao soltar minhas fezes, períneo, ânus e vagina se desintegrariam ao mesmo tempo. Eu também sabia que se, ou quando, conseguisse me livrar das fezes, o bebê provavelmente sairia junto. Mas fazer isso seria cair para sempre, ser feita em pedaços

Antes de dar à luz, folheando a seção de tira-dúvidas das revistas sobre gravidez na sala de espera da clínica de ginecologia e obstetrícia, descobri que uma quantidade surpreendente de mulheres tem uma preocupação análoga, porém distinta, quanto à evacuação e o trabalho de parto (ou isso, ou os editores inventam como estratégia de projeção): 

P: Será que meu marido vai continuar me achando atraente depois de assistir ao meu parto? Afinal, ele vai me ver defecando involuntariamente, com a cabeça de um bebê passando pela minha vagina. 

A pergunta me deixou confusa; sua descrição do trabalho de parto não me pareceu tão diferente do que acontece durante o sexo, ou pelo menos algum sexo, ou pelo menos grande parte do sexo que considerei bom até agora. 

Ninguém perguntava: Como me permito cair para sempre, ser feita em pedaços? Uma pergunta de dentro. 

Na cultura “grrrl atual, tenho percebido o domínio da expressão “preciso de X assim como de um pau na minha bunda”, sendo X, é claro, justamente aquilo de que você não precisa (ou seja, você precisa de um pau na bunda ou de mais um buraco na cabeça assim como um peixe precisa de uma bicicleta, etc.). Sou totalmente a favor de garotas terem autonomia para rejeitar práticas sexuais de que não gostam, e sabe Deus muito bem quantos rapazes hétero adoram meter em qualquer buraco, até os que machucam. Mas temo que essas expressões apenas enfatizem a “ausência constante de um discurso do erotismo anal feminino […], o fato banal de que, desde a época clássica, não há no Ocidente um discurso sólido e significativo que dê ao erotismo anal das mulheres alguma importância. Qualquer importância”. 

Sedgwick fez de tudo para colocar o erotismo anal das mulheres no mapa (ainda que ela preferisse o spanking, que não é exatamente uma prática anal). Mas embora Sedgwick (e Fraiman) quisesse abrir espaço para que o erotismo anal tivesse importância, isso não é o mesmo que investigar como ele é. Até a ex-bailarina Toni Bentley, que se esforçou ao máximo para se tornar “a” especialista em sexo anal em sua autobiografia A entrega, não consegue escrever uma única frase sobre o assunto sem obscurecê-lo com metáforas, trocadilhos ruins ou aspirações espirituais. E Fraiman enaltece o ânus da mulher principalmente por aquilo que ele não é: a vagina (presumivelmente uma causa perdida, para o sodomita). 

Não estou interessada numa hermenêutica, uma erótica ou uma metafórica do meu ânus. Estou interessada em dar o cu. Estou interessada no fato de que o clitóris, disfarçado de um botão discreto, se expande naquela região como uma arraia, sendo impossível dizer onde seus oito mil nervos começam e onde terminam. Estou interessada no fato de que o ânus do ser humano é uma das partes com mais nervos do corpo, como Mary Roach explicou para Terry Gross num programa de rádio desconcertante que escutei enquanto voltava para casa depois de levar Iggy para tomar as vacinas de um ano. Eu vigiava Iggy o tempo todo pelo retrovisor, para ver se ele teria um colapso neuromuscular como efeito colateral da vacina, enquanto Roach explicava que o ânus tem “muitos e muitos nervos. É porque ele precisa saber a diferença, pela sensação, entre sólido, gás e líquido, e conseguir, seletivamente, soltar um ou talvez todos. Ainda bem que existe o ânus, porque, você sabe, a gente tem de agradecer muito, senhoras e senhores, pelo ânus humano”. Ao que Gross responde: “Vamos fazer um pequeno intervalo e voltamos logo. Você está ouvindo o programa Fresh Air [ar puro]”. 

Alguns meses depois da Flórida: você queria transar o tempo todo, cheio de libido por causa dos novos hormônios e do bem-estar renovado com o próprio corpo; eu mergulhava na abstinência, sem querer deslocar a semente humana conquistada a duras penas, deixando o corpo cair de vertigem na cama sempre que eu virava a cabeça – cair para sempre –, sentindo náuseas com qualquer toque, como se as células do meu corpo estivessem enjoadas, cada uma delas. 

O fato de os hormônios transformarem em náusea a sensação de arrepio provocada pelo vento ou pelos dedos de alguém tocando a pele é um mistério profundo demais para eu conseguir acompanhar ou entender. Os mistérios da psicologia são muito simples em comparação, assim como a evolução me parece infinitamente mais profunda em termos espirituais do que o Gênesis

Nossos corpos foram ficando mais estranhos – para nós, para o outro. Alguns pelos grossos começaram a brotar em novos lugares no seu corpo, e novos músculos a se espalhar em volta do quadril. Meus seios ficaram doloridos por mais de um ano e embora a dor tenha passado, parece que eles pertencem a outra pessoa (e, em certo sentido, como ainda estou amamentando, pertencem). Durante anos, você era cheio de não me toques; agora tira a camisa quando tem vontade, entra sem camisa e todo musculoso em lugares públicos, corre – e nada, inclusive.

Por meio da T, você vivenciou ondas de calor, uma nova adolescência, sua sexualidade descendo do labirinto do seu cérebro e se propagando pelo corpo como fios de um algo- doeiro soltos com o vento. Você gostou das mudanças, mas também as sentiu como um tipo de concessão, uma aposta na visibilidade, como no seu desenho de um fantasma que diz: Sem essa folha, eu seria invisível. (A visibilidade torna possível, mas também disciplina: disciplina o gênero [gender] sexual, disciplina o gênero [genre] discursivo.) Por meio da gravidez, tive meu primeiro encontro prolongado com a vacilante, a lenta, a exausta, a incapaz. Sempre achei que dar à luz faria com que me sentisse vasta e invencível, como o fisting. Mas mesmo agora, dois anos depois, sinto minhas entranhas muito mais estremecidas do que plenas. E já quase me conformei com a ideia de que essa sensação veio para ficar, que agora cabe a mim – a nós – lidar com essa susceptibilidade. A fragilidade pode ser tão atraente quanto a ousadia? Acho que sim, mas às vezes é difícil encontrar um jeito. Sempre que isso me parece impossível, você me dá a segurança de que conseguiremos encontrar um jeito. E assim prosseguimos, nossos corpos descobrindo um ao outro de novo, e de novo, mesmo que eles também estivessem – ou que nós também estivéssemos – bem aqui, o tempo todo. 

Por motivos que hoje quase desconheço, chorei um pouco quando nosso primeiro técnico de ultrassom – Raoul, um rapaz gentil e aparentemente gay, que usava no jaleco branco um broche prateado com um rabisco de espermatozoide – nos disse, na vigésima semana, que nosso bebê era um menino, sem sombra de dúvida. Acho que precisei lamentar alguma coisa – a fantasia de uma filha feminista, a fantasia de uma eu em miniatura. Alguém cujo cabelo eu poderia escovar, alguém que seria minha aliada mulher numa casa ocupada por um adorável terrier, meu enteado bonito e vaidoso, e uma garbosa butch que toma T. 

Mas não era meu destino nem do bebê. Menos de 24 horas depois da notícia, eu já tinha aceitado. A pequena Agnes seria o pequeno Iggy. E eu o amaria intensamente. Talvez até lhe escovasse os cabelos! Como você me lembrou depois que saímos da consulta, Ei, eu nasci mulher e olha só no que deu