[N.104 | 2024]

Autobiografia da minha mãe [fragmento]

Jamaica Kincaid

Observar qualquer ser humano desde a infância, ver alguém surgir, como uma nova flor em botão, cada pétala primeiro enrolada bem apertada nas outras, e depois o afrouxamento natural e o desvelamento, a abertura em uma floração, a vida dessa floração, deve ser algo incrível de se ver; observar a experiência se acumular nos olhos, nos cantos da boca, o desabar da testa, o peso no coração e na alma, a aglomeração de gordura na cintura, nos peitos, o desacelerar dos passos não pela velhice mas apenas pela cautela da vida — tudo isso é algo tão maravilhoso de se assistir, tão maravilhoso de se ver; o prazer para o observador, a testemunha, é uma corrente invisível entre os dois, o observado e o observador, o testemunhado e a testemunha, e creio que nenhuma vida esteja completa, nenhuma vida seja realmente inteira, sem essa corrente invisível, que sob muitos aspectos é a definição do amor. Ninguém me observou e testemunhou, eu observei e testemunhei a mim mesma; a corrente invisível saía e voltava para mim. Passei a me amar por rebeldia, por desespero, porque não havia mais nada. Esse amor basta, mas apenas basta, não é o melhor: tem o gosto de uma coisa que ficou tempo demais na prateleira e estragou, e que revira o estômago quando é comida. Ele basta, ele basta, mas só porque não existe mais nada que ocupe seu lugar; não é recomendado.

E portanto, quando vi pela primeira vez o fluido vermelho denso do meu sangue menstrual, não me surpreendi e não tive medo. Nunca tinha ouvido falar naquilo, não esperava, tinha doze anos, mas seu surgimento, para minha jovem mente, para meu corpo e alma, teve a força do destino cumprido: era como se eu sempre tivesse sabido, mas nunca tivesse assumido para a minha consciência, nunca tivesse entendido como exprimir em palavras. Veio daquela primeira vez tão denso e vermelho e abundante que foi impossível pensar nele como mero prenúncio, um aviso qualquer, um símbolo; era a coisa em si, meu fluxo menstrual, e soube na mesma hora que se deixasse de aparecer regularmente depois de algum tempo só poderia significar um enorme problema para mim. Talvez eu soubesse na época que a criança em mim nunca se aquietaria o bastante para que eu pudesse ter um filho meu. De um padeiro, comprei quatro sacos, do tipo em que se embalava farinha, e depois de tirar a marca tingida por meio de um longo processo de lavagem e branqueamento sob o sol quente, fiz quatro quadrados com cada um e os usei como panos para segurar meu sangue quando ele descia por entre minhas pernas. Depois que a esposa do meu pai me viu iniciar e completar esse ato, me disse que, quando eu virasse uma mulher de verdade, ela teria que se proteger de mim. Na época achei aquela declaração injustificada, pois, afinal, eu ainda me protegia dela. Foi mais ou menos nessa época, também, que a textura do meu corpo e o cheiro do meu corpo começaram a mudar, pelos grossos apareceram nas minhas axilas e no espaço entre minhas pernas, onde antes não havia nada, meu quadril se alargou, meu peito se adensou e inchou levemente no começo, e um espaço profundo se formou entre meus dois seios; o cabelo na minha cabeça se tornou comprido e macio e suas ondas se intensificaram, meus lábios se espalharam pelo rosto e engrossaram, adquirindo o formato de um coração que tivesse sido pisado. Eu me olhava num pedaço velho de um espelho quebrado que tinha achado no entulho debaixo da casa do meu pai. A visão do meu corpo em mutação não me assustava, eu só me perguntava como minha aparência ficaria; eu nunca duvidei de que fosse gostar completamente do que quer que me encarasse no espelho. E assim o cheiro das minhas axilas e entre minhas pernas também mudou, e essa mudança me agradava. Nesses lugares o odor se tornou pungente, forte, como se algo estivesse em processo de fermentação, aos poucos; em particular, naquela época e agora, minhas mãos quase nunca saíam desses lugares, e quando eu estava em público, essas mesmas mãos nunca ficavam longe do meu nariz, de tanto que gostava do meu cheiro, naquela época e agora.