[N. 128 | 2024]

Beluga

Andrea Nathan

O parto do Gustavo foi liso, o que no jargão dos obstetras significa tranquilo, sem intercorrências. Da banheira oval da maternidade, passei à sala cirúrgica. Força, descansa, força, descansa, força, força, força! Lá estava ele, branquinho, corado, túrgido e roliço como uma beluga. Agarrou o peito com voracidade, agitando as pernas e os bracinhos nus.

As belugas são uma espécie singular de cetáceo. Adaptadas ao ambiente ártico, possuem apenas um orifício respiratório, carecem de nadadeira dorsal, apresentam uma volumosa proeminência frontal. Não podem ser chamadas de golfinhos, nem de baleias.

“Precisamos levar o bebê para a UTI”, disse a pediatra, enumerando o que ela chamou de estigmas. A implantação das orelhas é baixa, a testa anormalmente alta, dois dedos do pé estão fundidos. “Ainda não sabemos o que ele tem, nem se vai continuar respirando sozinho”, completa.

O ar na sala de parto pesou. Senti um calafrio nas costas, olhei em volta para que alguém me confirmasse que aquilo era um engano. Carmelo, o pai, tinha a cabeça afundada entre os joelhos. Meu irmão André, que é médico, aproximou-se com sua conhecida franqueza: “Ferrou, Déia. É grave. Vou à neonatal ver como ele está.”

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Na página 35 do livro O filho eterno, Cristovão Tezza narra os pensamentos lancinantes do pai de um menino com síndrome de Down que acaba de nascer. Ele comemora que essas crianças quase todas sofram do coração, vivam pouco, devolvendo em alguns anos a liberdade aos pais. À noite, no quarto escuro da ProMatre, penso que, se a vida do Gustavo for fadada ao sofrimento, prefiro que ele não esteja vivo pela manhã.

A geneticista entra no apartamento bem cedo. Fala sobre a necessidade de uma cirurgia para reconstruir o crânio, pois as moleiras estão fundidas, o que impede o cérebro de crescer. Recomenda que Gustavo mame em livre demanda, para ganhar peso rápido e possibilitar a operação antes dos três meses. Omite, naquele momento, a taxa de sobrevivência de bebês com síndrome de Pfeiffer no Brasil: zero por cento. Nos Estados Unidos, soube depois em grupos de apoio nas redes sociais, há pessoas com a doença que chegam à idade adulta, graças a dezenas de cirurgias para reconstruir os ossos da cabeça, dos cotovelos, da coluna.

As belugas são animais gregários, formam grupos de dez indivíduos, em média. Ocasionalmente, é possível encontrar, vivendo entre elas, narvais. Também conhecido como unicórnio-do-mar, esse improvável cetáceo possui uma presa helicoidal longa e reta à frente da cabeça, semelhante a uma lança ou arpão.

Uma única cirurgia corrigiu o crânio do Gustavo, aos quatro meses de idade. A cicatriz escondida pelo cabelo loiro e os dedos do pé fundidos como um estilingue não o impedem de correr nem praticar esportes, embora ele prefira jogar Brawl Stars pelo celular com os amigos do nono ano. Se fosse um animal marinho, Gustavo seria um narval.