[N.48 | 2023]

Bloco de notas para a memória de uma mãe em construção

Maria Elisa Macedo

Dedico este texto à minha mãe,
que segue amor tão presente em mim.

Eu começaria e terminaria da seguinte forma: por causa da maternidade e do isolamento social, não pude escrever este texto.

Há um caderno de anotações em todos os lugares da casa. Em cada canto um. Todos vazios. Ou com frases soltas. Palavras que parecem vagar. Alumbramentos, receios, angústias, alegrias e descobertas. Hoje, junto-os como um quebra-cabeça.

Ainda que minha sede pela escrita não cesse, pelo tempo, a falta dele, o desejo por esses registros se perde. Temo perder, assim, a memória desse tempo.

Me atrevo aqui a juntar o que está em cada cômodo de dentro de mim. O pulsar do cursor na tela, o lápis batendo no papel.

O isolamento social tem várias derivações. Ao menos em mim tem sido assim. Quando penso nos porquês e nas consequências disso, dessa pandemia descontrolada, da péssima gestão do Estado, que acabou recaindo sobre todas e todos – mais sobre as mulheres, mães, trabalhadoras -, me ferve a face, a cabeça agita. Claro, como não.

Pronto. Achei o viés para a escrita.

Me lembrei, nesse percurso, que há também o isolamento maternal. A roda mudou. Me mudaram. Será? Mas escrever sobre isso? Meio deprê. Mais deprê.

Pensei, então, em escrever sobre o fascínio de presenciar tão de perto o meu filho crescer. E eu, a ser mãe. Definitivamente, a experiência mais forte e bonita que já vivi. Imagino que assim será. Vivo intimamente a mudança dos gestos, vejo o cabelo que acorda mais cheio, as habilidades que vão se somando, o afago, o lugar que nos tornamos. Nada nunca me trouxe tanta presença. Poderia falar horas sobre isso.

Todo dia ela acorda e faz tudo sempre igual, mas tudo já está diferente. O looping das mesmas coisas, só que diferentes todos os dias.

Adormeci ontem com a felicidade de poder comemorar o primeiro “Dia das Mães” com Martim, agora, fora da barriga. Mesmo sabendo do engodo capitalista até o osso. Fui acordada por ele, tal como acontece todas as manhãs. E esse amanhecer, por mais preguiçoso que seja (saudades de dormir mais de três horas seguidas), é uma delícia. Eu amo encontrar com esse rosto que por mais de nove meses fiquei curiosa para saber como era. Não tem romantismo nisso. E, ainda assim, são lindos esses encontros com essa explosão de sentimentos diários 24 horas por dia. É, de fato, uma imensidão a maternidade. E fui me emocionando, me indignando, me alegrando com tantos relatos. Isso enquanto amamentava Martim e já partia para sua rotineira soneca matinal. Quis que ele dormisse rápido para poder ler mais e poder passar para o papel o que me ocorria e partilhava em escritas o que ressoava dentro. E, por um lapso de segundo, me dei conta de que, além do sono que em mim abundava, eu estava com meu filhote pregado em mim, já de olhos fechados, num quartinho escuro, nós dois deitados, escutando uma das músicas que o embala nesse momento. A mãozinha dele recosta no meu peito. Quis ficar ali. Não só ele precisava de mim naquele momento, mas também eu dele. Larguei o celular e o fitei. Titubeei entre dormir com ele ou contemplá-lo. Fui observando cada detalhe do seu rosto, corpo, respiração. Relembrei, como um vendaval que abre janelas de madeira, do dia do nascimento dele. E chorei. Nunca tinha revisitado aquele dia assim. Me veio a sensação nítida de arrega-lo pela primeira vez. Não lembro da dor. Mas lembro dele vindo, do medo que se foi quando olhei pra ele, cheio de sangue que se misturou com meu suor. Olhei para ele e me lembro de dizer para ele, em pensamento ou em voz, não sei, “é difícil mesmo nascer, filho”.

Chorei há pouco, lembrando-me desse dia e agora vendo ele, sentindo-o no meu colo. E de como o cansaço é extremo, e que viver essa oportunidade é grandioso. Acolher. O gesto simples. Esse colo, que de fora é tão contestado. De fato, é um privilégio desse par – dar e receber colo.

Amanhã voltarei para minha atividade laboral – digo assim, pois me recuso a dizer que “volto a trabalhar”, sendo que o que mais fiz nos últimos meses foi justamente isso. Ressoa em mim a tensão da dicotomia. Estar cansada e amar imenso. De ter sono e ser inteira um estado de alerta. De chorar a dor do mundo e me invadir uma felicidade genuína. De adorar minha profissão e desejar ir devagar. De me desesperar por causa do isolamento, de não poder sair de casa, ver os meus e agradecer que posso viver tão amiúde a vida, crescer fora de mim. De onde veio essa angústia de me sentir tão feliz e grata e, por isso, não poder reclamar da solidão, da exaustão, das saudades, da falta de rede de apoio?

Um turbilhão de sentimentos se entrelaça em mim. Aquela sensação de muitos colares juntos que, pendurados, se enrolaram e agora preciso desembolar.

Quero partilhar sobre ser mãe, ser filha. Ser filha que está sem a mãe. Que mãe é lugar. Quero falar sobre como não dá para dissociar a maternidade, a maternagem, do político. De como as estruturas vão mostrando suas rachaduras ao ver-me mãe e isso só fortalece o que antes já fazia luz. Surgem questionamentos de expressões que hoje noto equivocadas, como “recompensa”, “estar no lucro” e “dormir como um bebê”.

Ser mãe não é moeda de troca, nem para meu filho nem pra ninguém. E dormir é difícil para bebês, eles precisam de ajuda, têm um dispositivo primitivo neles que diz que adormecer é correr perigo – e eu nem fazia ideia disso. E que sentem fome, angústia, saudade, já nessa tenra experiência humana. E que aceitarmos isso não nos faz menos cansadas. E acolhê-los, seja a hora que for, com carinho, aconchego e colo não fará mal para eles, ao contrário, construirá uma segurança emocional, afetiva e cognitiva bem enraizada. Queria falar sobre meu lugar de privilégio, e também da exaustão. Dos direitos usurpados, que se convertem em privilégios nos dias de hoje. Me compadeço das várias mulheres que não têm a oportunidade de ser acolhidas, abraçadas. Das milhares e milhares de mulheres que precisam sair para trabalhar fora e deixam seus filhos.

Queria falar sobre chorar. Sobre fragilidade, medos, coragem. Sobre algumas coisas que nos dizem, como: “Não chore na frente do seu filho” ou “o bebê chora o que a mãe cala”.

Vou te contar: eu chorei muito desde que Martim nasceu. Muito mesmo. Choros a que até hoje não consigo dar nomes. Choros de brigas, de emoção, de amor, de derretimento, de cansaço, de ansiedade, de tristeza, de saudade da minha mãe, de medo, de deslumbramento, por me sentir perdida, sozinha. Chorei quando ele chorou. Quando tomou a vacina. E sabe o que isso diz sobre mim? Que ele conheceu a humanidade da mãe dele, que não é guerreira, nem heroína. Minha fragilidade não é contrária à minha disposição ávida a ser sua proteção, seu apoio, seu colo.

Duvidei da minha capacidade de ser boa mãe. Ainda acontece. Mas me fortaleci (e me fortaleço) ao saber que sou suficientemente boa, que sou seu abrigo e sou uma construção. E amo sê-lo. E amo cada parte minha que sabe disso e se entrega às vulnerabilidades e fortalezas e não quer mais duvidar da sua capacidade e possibilidades. São duras as demandas do dia a dia dessa mãe que, por causa do isolamento pandêmico, não tem ajuda e vive uma gincana diária, no meu caso, em dupla com meu companheiro. E a parte mais legal disso tudo é ser mãe do Martim. O puerpério me trouxe uma sensação de estar em escombros. E também de nascer – e isso, repito, não é tarefa fácil. Para ambas as situações, soube a fresta de luz. Feliz pela minha escolha, de ser uma mulher livre que escolheu ser mãe.