[N. 20 | 2023]

Canções puerperais

Daisy Serena

Rebentação

eu queria escrever uns versos pra matar o tempo, a saudade, a vontade. pra saciar a sede, o desespero, a febre, o silêncio. eu queria escrever umas palavras ainda que soltas, qualquer coisa que me lembrasse que eu ainda tô aqui, aqui, aqui dentro, como eu tô fora, fervendo.

mas meu filho acordou dez vezes noite passada. de dez em dez, vinte em vinte, trinta em trinta, parecia fazer seus próprios versos com a madrugada.

dei o peito esquerdo, esse que tá sempre mais cheio e mais pra baixo, incontáveis vezes. até que, na última, deixei ele recostado num braço.

escrever versos com a cria no braço não é tarefa fácil, ainda que tanta tecnologia e tendinite estejam já processadas, entranhadas.

escrever versos parece ninharia diante do caos apocalíptico. perfume de poliana.

mas experimenta engolir a palavra, vê se desce macio esse enrosco.
junta com a massaroca do choro dos dois acordados.

de trintaemtrinta até às seisetrinta.

experimenta deixar pra lá mais uma vez esse rasgo-engasgo.

num engasga!

cê já sabe a manobra pra arrancá o entalo?

heimlich

ixi foi a primeira palavra que meu filho falou. e eu falo (pra dentro) enquanto a garganta denuncia que ou eu deságuo ou eu deságuo ou eu deságuo

ou ela faz rebentação pra derramar.

[…]

filho da terra,
da água,
do fogo
do ar

sequência
do antes de ti

que tudo te
compõe

imenso
diminuto

pedaço
de futuro

sândalo
para meu
ori

missiva para meu candengue-acalanto, acauã

esse é um bilhete que se queria escrito enquanto você tirava o cochilo das 10, mas só logrei terminar no cochilo das quase 15. acreditei, um pouco, que daria tempo, mesmo sabendo que era aposta alta. querer um banho tranquila mais um tempo de escrita alargado.

não deu.
e tudo bem.

hoje, tudo bem.

essa talvez seja a perda mais significativa (ainda que, torçamos, momentânea) que a maternidade me trouxe: o tempo necessário para minha subjetividade alcançar a palavra escrita – por mim, por outrem – às vezes, alcançar a própria memória da palavra já é uma vitória.

o cansaço, os hormônios, o relógio funcionando na lógica tua-nossa, que quem diria oito meses parecem anos e ontem na mesma linha. exigir que a mente funcione com agilidades antigas, quando o corpo todo está focado em te fazer crescer nutrido e afetivo, é simplesmente irreal. tenho tentado aceitar com serenidade, uns dias com mais ou menos dificuldade (a palavra é uma saudade constante).

no entanto, um dia saberá também que, para cada perda, há um equilíbrio.

despertar com teu sorriso grudado no meu nariz, às seis de um dia mal amanhecido, é o único modo de acordar relativamente bem humorada logo cedo (mas o café ainda é urgente); acompanhar a tua descoberta do funcionamento minucioso do corpo que nós, aqui do outro lado dos anos, custamos tanto a reaprender, tem sido um privilégio de autoconhecimento; desacelerar do capital quando possível e repensar novos modos de estar perto e garantir a vivência; ampliar os modos de ser família, ressignificar o lamber do vento nas folhas de toda travessia; abismar com a existência do mínimo; persistir em sacolejar os desejos; presenciar a aldeia que se forma ao nosso redor, permitir que as dores e as lágrimas existam em seu valor tão pessoal; mesmo o esgotamento, nada romântico, tem sua medida necessária (ainda que seja para aprender a pedir/aceitar ajuda).

vou aprendendo que há outras formas da palavra percorrer meus dias, aguardando, aguardando, até que ela volte a se esgueirar para dentro dos meus dedos.

das coisas que ganhei: o cheiro do verão foi você quem trouxe.