[N.40 | 2023]

Carta às 4

Ana Freitas

Queria falar-vos do declínio do corpo, da garganta ou do pó da pandemia, a cor ocre da argila. Espirros de memórias ventiladas. Falar-vos de quando atravessamos os vidros das janelas como um passatempo. O tempo passou.

Lembram-se de quando escutamos os sussurros? As ambulâncias, as luzes desmaiadas nas ruas; dentro de casa, lugares inventados como pontos de fuga e gritos.

Queria escrever-vos versos nas mãos, nas patas dos bichos aflitos, nos chifres. Não sei – quais seriam os nomes? Alguém disse que dar nome é uma forma de antimonotonia. Desenhamos o céu sem aviões, as ondas, os trovões, aquela chuva de jasmim, o manifesto mar, o tamanho do vento, o azul. Azultopia, disse a Alice. Lembram-se do dia em que lemos o rio e as histórias: o Bruno disse que o jacaré fugiu com o elefante, o leão foi a Paris – para onde foram os lobos e o bicho da seda?

E a promessa dos pássaros lentos protagonistas do martírio.

Queria dizer-vos, talvez em delírio, que chegará a vossa vez de ter esse alimento, o privilégio de afirmar:

Antes que tudo, livres!

Antes que tudo, mundo!

Palavra voa. Mas, se tudo voa, nem a palavra nos pertence. Não somos tempo, somos o lugar.

Sei agora que o sufoco conseguiu adiar o amor, a máscara venceu e tapou a boca do poeta. Mas talvez vocês não saibam que o redondo silêncio visto do espaço é paz. Hoje, sem paz, há um sopro apertado na Terra. Um joelho no pescoço.

Queria lembrar-vos que não resistir é permitir. O osso da morte acena sorridente sem despedida, opõe-se ao amor que se constrói no oco. Como o ninho. A linha invisível que une os nossos ombros. Por isso, peço para que ninguém pise os nossos vazios. Já nos basta os escombros junto às campas, os minutos a empalidecer nas avenidas sem padres. No mesmo mapa, as olheiras do tempo derretem no forno da cozinha.

A fome, que é raiz, sobe sozinha.

Queria cantar-vos bem alto. O suor, os medos, o horror. Ensinar-vos o equilíbrio. Mais de setenta vezes foram os dias, em torpor. Aprender a ver no escuro, a língua na pele do chão e do teto.

– Alguém lambeu nossos sonhos como sorvetes.

Os olhos da casa ainda estão abertos. Do susto, exílio.

Os astros lá de cima, confusos. Confusos estão também os dedos que chupamos depois da fruta, disperso o feiticeiro. A justiça derramada.

É a beleza, atada por inteiro aos vossos pulsos, que queria mostrar-vos como caminho.