[N.65 | 2023]

Carta sobre vó

Marcela Helena Lopes

trouxe um pouquinho de casa comigo. devorei tudo em dois dias. fui afoita, botando gomo após gomo de fruta após fruta na boca, acho que para ver se molhava um pouco por dentro. eu costumo ser muito cheia de água, mas percebo que estou secando. acho que o momento me leva a acreditar que preciso ser menos emotiva, me magoar menos, ser mais forte e firme para dar conta da secura externa desse contexto de distâncias abissais. tento me manter menos suscetível a afogamentos internos, menos frágil. se eu também estiver seca, eu consigo me manter ilesa e focar no bebê crescendo dentro de mim, e proteger nós dois. eu acho que esse tico de casa me lembrou de me regar um pouco, tentar saciar a sede que não vai embora, tamanha secura dentro. me sinto há tanto tempo tão sedenta do colo das mãos de panhar mexerica, catar ora-pro-nobis, amolar faca na escada, picotar couve se cortando no processo sem nem ver, desembaraçar cabelo de neta, carinhar e batucar levinho meu braço, pegar tampa quente-pelano do panelão de alimentar batalhão no forno da nossa casa, de receber batalhão e seu coração onde cabia algum outro termo para expressar sua vastidão de amor e empatia que não seja batalhão. mãos fortes que atravessaram a cidade carregando balde d’água. mãos fortes que trocaram as fraldas de pelo menos 28 crianças em casa. mãos fortes que seguravam minhas mãos quando eu chorava, chorava e as mãos, elas entendiam, eu não precisava nem tentar explicar. mãos firmes que conseguiram até largar os cigarros no final. mãos de dar as mãos, vamos dar e vamos juntos rezar. eu lembro que, quando foi a hora de despedir, a primeira coisa que fiz foi correr para segurar essas mãos, dar beijinho nessas mãos, lembrar que o melhor lugar para as minhas mãos sempre foi ali, junto das suas. aterrando uma à outra com movimentos simples, diários, fluidos. firmando mãos nas mãos, mãos cheias de raiz, de força, coragem, cheias de água.

Este texto faz parte do Caderno de escritura e maternidade 01 ‘Te coloco onde você não está’, publicado em maio de 2022, fruto da oficina de leitura e escrita línguamãe, com ciclos realizados entre 2021 e 2022, organizados e guiados por Gabriela do Amaral e Cacau Araújo. O Caderno é um projeto cultural, pedagógico e de distribuição gratuita.