[N.77 | 2023]

Chorar como um bebê

Flávia Péret

Faltam poucas horas para o bebê nascer. São 22h52. Até aquele horário, você ainda não tinha sentido a primeira contração. Você estava relativamente calma. Próximo à meia-noite, você resolve se deitar um pouco, acreditando que faltariam ainda muitas horas pra ir pro hospital. O médico foi taxativo. Você só vai pra maternidade quando a dor ficar insuportável. Até aquele momento, você acreditava em algumas coisas, aquelas que, depois daquela madrugada, na vertigem dos dias porvir, irão desaparecer. Você acreditava, por exemplo, que estava preparada para a maternidade e que estava preparada para aquela dor e que estava se preparando pra ela quando, na infância, enfrentava suas repetidas crises de prisão de ventre com orgulho. Até que um dia sua mãe te explicou que os bebês nascem por outro buraco. Você começou a entender que tinha muitos buracos no corpo. Mas agora (quantos anos depois?), prestes a sentir a primeira grande contração e depois a segunda, a quinta, a oitava, você descobre que não estava nem um pouco preparada para aquela dor. Você pega o pano que estava enrolado em volta do seu pescoço porque era uma noite fria de julho e porque antes de começar a sentir dor você estava apenas sentindo um friozinho e enrosca o pano entre as mãos e faz com ele uma espécie de corda que puxa com toda sua força, segurando firme pelas duas extremidades, mas como isso não diminui sua dor, às vezes você morde aquela corda e, quando está com o pano dentro da boca, mastigando aquilo sem entender o porquê, você grita e seu grito é uma mistura abafada de pano mordido e muita dor. Uma dor desconhecida e descomunal que te repuxa por dentro. A única coisa que você pode fazer é ceder. Violentamente, você abre espaço dentro de você. Você ainda não sabe que, junto com o bebê, irá nascer um novo lugar. Uma encruzilhada. Você não entende o que está acontecendo. Não, você não está mais debaixo do chuveiro gritando de dor. Não, você não está mais dentro do carro gritando de dor. Lá fora, uma madrugada silenciosa e gelada de avenidas sem carros e semáforos verdes se abrindo para você passar. Agora você está no corredor da maternidade. Você se ajoelha porque sente que precisa fazer isso. Como sentiu que precisava mastigar o pano. De repente, uma enfermeira grita: não faz isso! E exatamente nesse instante, o volume de água de um balde explode de dentro de você. Faz um barulho. Escorre. É muito. Você não sente nenhum cheiro. Depois, você dá um grito descomunal e você nem sabia que era capaz de berrar daquele modo, com aquela intensidade, você que sempre teve a voz tão fraquinha. Tão magrinha. Você que escutou a vida inteira que pra ser boa parideira é preciso ter ancas largas. Você pergunta que horas são e toma um susto porque o tempo, assim como seu útero, havia se contraído e, de repente, você vê um bebê saindo de dentro de você. É tão fulminante. BLACK OUT. Corta. O bebê agora está no seu colo. Ele é cabeludo e tem uma covinha na bochecha esquerda, o que indica que antes de nascer recebeu o beijo do anjo. Você fez exatamente esse pedido. Nas próximas horas, os funcionários da maternidade irão comentar com você que fazia tempo que não viam um parto tão rápido. Mas você não está com cabeça pra achar isso bom, porque seu corpo está tremendo muito e você começa a sentir que, se alguém não te segurar, você vai cair e, depois, parece que o bebê começa a cair também. Não eram quedas propriamente ditas, era como aquela sensação, muito física e real, que as pessoas têm no semi-sono, parece que o corpo está despencando, você pergunta para a enfermeira se aquele comportamento é normal. A partir daquela madrugada, a normalidade se tornará sua maior obsessão. É normal um bebê chorar assim? É normal o bebê recusar o peito da mãe? É normal uma pessoa perder o contorno que separa seu corpo do mundo? É normal sentir o próprio coração em carne viva palpitar fora do corpo? Você começa a se misturar com o bebê. E esse coraçãozinho, de quem é? Você até faz um desenho. Ou foi um sonho? Você dormindo, em posição fetal, dentro do berço do bebê. Sua mãe está na Itália. Você precisa inventar uma mãe, ou melhor, você precisa inventar duas mães: uma pra você e uma pro bebê. Você sente no seu corpo a queda do bebê. O pai não sente a queda. Ele também está cansado, mas o corpo dele ainda está lá, do mesmo jeito que entrou na maternidade, preso ao chão. Seu vocabulário, assim como seu útero, se contrai. Você não sabe descrever com outras palavras. O bebê se mexe, enroscadinho na manta de lã verde, tricotada em comemoração ao nascimento da sua irmã, quarenta anos antes, e você sente seu próprio corpo despencando. Você nunca mais dorme porque você começa a sentir um medo muito grande de não vigiar o bebê. Você sente que ainda não é uma mãe. O que você é? Você é uma pessoa com um medo anormal de que algo anormal aconteça. O choro que você começa a escutar embaixo do chuveiro toda vez que se afasta alguns minutos para lavar os pontos infeccionados da sua vagina, também em carne viva, é de quem? Você se sente encurralada. Você se sente incapaz. Você ainda não tem coragem de admitir, mas você começa a se arrepender um pouco. Você promete a si mesma que nunca vai contar pra ninguém que você está um pouquinho arrependida. Você tem certeza absoluta de que você não é uma mãe. O que você é? O temor que o bebê, no futuro, leve tudo ao pé da letra, que não seja capaz de separar a vida do texto e que não seja capaz de acrescentar à entrelinha sua própria interpretação dos segredos. Você escuta um eco. Você ainda não está preocupada em ensinar ao bebê a duvidar de certas palavras, suas preocupações são mais materiais e imediatas: o sono picotado, o choro infinito, as cólicas, a consistência das fezes, o frio, o calor, o problema do leite. Você não tem leite. O pediatra não colabora, a terapeuta não colabora, sua mãe continua viajando, seu companheiro não colabora, porque ninguém sabe tirar leite de pedra e ninguém te avisou que os bebês também sofrem de angústia. Aos poucos, você vai descobrindo várias coisas sobre ele. O bebê quer a sua paciência. Você não se lembra de ter, em algum momento da vida, ficado tão obcecada por outra pessoa. O bebê não fala. A comunicação entre vocês é difícil. Você passa o dia tentando traduzir aqueles gestos e todos os barulhinhos que ele faz e você não faz outra coisa, a não ser chorar como um bebê.