[N.49 | 2023]

Começo e violência

Marina Guimarães

Não quis marcar a data do parto do meu segundo filho. Na minha primeira gravidez, cheguei à 42ª semana sem contrações nem nenhum “sinal de parto”, e o médico indicou a cesariana. Os índices de cesariana no Brasil chegam a 95%, o maior índice de todo o mundo. Entrei para essa estatística. Fiquei frustrada, mas confiei no saber científico do médico. Ele usava o maior dos argumentos: a vida do meu filho estava em risco, e ele não poderia mais assumir o risco. Pedi para induzir o parto e o médico me convenceu de que o melhor para o meu filho era a cesariana. A culpa, no fim, seria minha. Argumentos médicos que eu quase não conseguia mais ouvir depois de três semanas sem dormir por dores nas mãos, em decorrência de uma “Síndrome do túnel do carpo”, que me acompanha desde então.

Três anos depois, foi o segundo parto. Eu já me sentia mais forte, já via que a maternidade era possível e real. Dessa vez, eu tinha mais experiência, sentia-me mais emancipada e podia argumentar com um médico com um pouco mais de autonomia. À espera do segundo filho, tive um problema gestacional e fiquei de repouso por quatro meses. Minha resistência foi me sentir segura para escolher meu parto. Eu queria, não a todo o custo, mas queria um parto vaginal. Diferentemente de muitas mulheres, eu tenho condições de escolha. Era o que pensava. Em muitas medidas, tenho; em outras, tenho meu corpo controlado, como o de tantas mulheres.

O obstetra que me acompanhava disse que era arriscado um parto vaginal tendo em vista que tinha tido uma cesariana havia três anos. Risco de ruptura uterina. Saí da consulta e procurei diversos artigos médicos sobre o assunto, em revistas científicas de qualidade. Perguntei também a colegas professores da área. Cheguei ao mês seguinte com diversos artigos e com um dado estatístico claro: o risco da ruptura uterina no meu caso (três anos após o primeiro parto) era menor do que os riscos da própria cirurgia cesariana. Ele disse: “Tudo bem! Quando começarem as contrações, voltamos a falar da cesariana.” Nesse momento, contou diversos casos sobre mulheres que começaram com “essa história de parto normal”, mas antes de atingir os três centímetros de dilatação já imploravam por uma cirurgia cesariana. Quando perguntei sobre doula, ele disse: “Marina, muito me impressiona, uma mulher com sua formação, professora universitária, voltando às práticas de povos subculturais, como as do interior do Nordeste do Brasil, que insistem nessa prática ancestral”. Naquele momento, percebi a linha abissal, num sul não geográfico, que me separava daquele discurso que, ainda assim, me ameaçava.

Não tinha mais volta. Estava com 37 semanas de uma gestação de risco. Nenhum médico me aceitou como paciente. Até esse momento, embora tivesse lido muito sobre o parto natural, as minhas consultas eram quase que na totalidade sobre como não perder o bebê ou como não provocar um nascimento prematuro.

Tentei me fortalecer a partir de outras redes. Encontrei uma doula, amiga de uma amiga, que me atendeu por mensagens de celular. Ela morava em outra cidade. Foi muito importante. Uma amiga médica, que já tinha tido dois partos vaginais, se dispôs a ser minha guardiã para assuntos médicos. Meu companheiro teve como lema o respeito: seu corpo, suas regras. Ao meu lado, sem questionar.

Chegou o dia 22 de outubro de 2015. Pedro escolheu a “data prevista” para o parto, como indicado pelo médico no primeiro exame de ultrassonografia.

À 0h40, comecei a ter contrações; Pedro nasceu por cesariana às 20h40. Nesse dia, duas mulheres ocuparam parte do meu pensamento: minha mãe e minha sogra. Até hoje, com nenhuma das duas falei sobre o assunto. Minha mãe teve um parto difícil no nascimento do meu irmão mais velho e ambos quase morreram. Perdeu uma filha aos nove meses de gestação, por erro médico. Minha sogra, mãe de três filhos por parto vaginal. Filhos que, nas palavras dela, quase nasceram no corredor do hospital. De forma indolor e sem nenhum problema.

Naquele dia, a história da minha sogra me dava força e a da minha mãe me dava medo.

Resolvi que seria um dia para conhecer meu corpo, os limites da minha dor. Confesso que, desde esse dia, lido de forma diferente com meu corpo – mais livre e mais segura.

Fiquei em casa, no meu quarto, até às 18 horas. Contrações, banhos, massagens. Bruno e minha mãe estavam comigo. Bruno segurando minhas mãos e minha mãe me dizendo para ir para o médico a todo momento.

Fomos para o médico. Saí de casa sabendo da enorme possibilidade de não ter um parto vaginal. Ainda assim, sabia que aquelas horas já tinham valido a pena.

Cheguei ao consultório do obstetra. Bolsa rompida e com sete centímetros de dilatação. O obstetra não conseguiu esconder sua frustração. Afinal, até aquele momento, eu não falei de anestesia, nem de cesariana. Ele perguntou, na minha frente, ao meu companheiro: “ela vai querer mesmo isso?”. Convivendo com as dores e exercendo um controle sobre meu corpo, que não sabia que era possível, fui para a maternidade. O obstetra disse que ia em seguida.

Até aquele momento, esse relato seria apenas de emancipação do corpo e autocontrole da dor. Até aquele momento, nada para mim havia sido sentido como violência, embora hoje seja evidente que já estava ali.

Ao entrar na maternidade, o cenário mudou. Meu obstetra, que já havia combinado que estaria presente no meu parto, disse que teria uma reunião imperdível e não poderia mais ficar. Pedi para ele ficar, implorei. Ofereci pagar. Não era possível.

O parto vaginal estava mais distante agora. Quem acompanharia o meu parto seria um/a médico/médica de plantão. Certamente, não fugiriam aos dados estatísticos da cesariana. Eu sentia o bebê praticamente nascendo.

Chegou a doutora Maria de Fátima. Fez o toque. Estava com oito centímetros de dilatação. Pediu às enfermeiras para me prepararem para a cirurgia. Não me olhou. Não me disse nada. Eu disse que queria tentar o parto vaginal.

– Te dou cinco minutos – disse ela.

Um minuto depois, duas enfermeiras entraram e me amarraram à maca. Eu estava, segundo elas, parecendo um animal com dor e tinha que ser domada. Rasparam meus pelos pubianos. Cortaram-me a pele. Estavam preparando a cesariana.

Bruno foi procurar outro médico. Não aceitou o comportamento da médica comigo. No momento em que as enfermeiras me cortaram, ele não estava no quarto.

Encontrou outro médico. Esse médico havia sido meu obstetra no início da gestação. Ele não prosseguiu porque esteve fora do Brasil por meses. O doutor chegou e disse que faria meu parto, que eu não tinha mais condições de esperar por um parto normal e que poderia ficar tranquila.

Estava na sala de cirurgia, deitada, com muitas dores. Agora as dores já eram outras. O anestesista pedindo para que eu tivesse calma, iriam me anestesiar e, se eu me mexesse, poderia ficar tetraplégica. Eu estava tendo contrações. Certamente, quase para o nascimento do bebê. Como iria ficar parada? A doutora Maria de Fátima me segurou, fiquei por dias com as marcas dos dedos dela nos meus braços. Fiquei calma. A dor havia acabado e meu parto vaginal também.

Lá estava a doutora Maria de Fátima. Deveriam ser dois obstetras para realizar o parto. Ela começou a falar, a me xingar. Eu estava ali para afrontá-la, eu não tinha o direito de interferir no plantão dela. Disse que poderia fazer o que quisesse de mim. Como já tinha feito.

Olhei para o lado e o Bruno não estava. No Brasil, é direito da gestante ter um acompanhante na hora do parto. Pedi que o chamassem. Ela disse: “Nem seu marido se preocupa, senão, ele estaria aqui”.

Vomitei.

Ela disse: “Quem vai limpar essa sujeira? Acha que vou fazer um parto nesse lixo?”. O doutor, embora mudo e sem me defender, pegou um pano e limpou o vômito. Disse: “Assim está bom para a senhora?”.

Mas ela não parou. Ela continuou a gritar. Disse que havia uma mulher com gravidez tubária que tinha perdido o bebê e, pelo meu “show”, eu devia estar sofrendo mais. Eu estava anestesiada sobre uma cama.