[N.17 | 2023]

Do desfiar ao tecer – Manto materno

Assunção de Maria Sousa e Silva

Minha avó Salu tinha um ofício cuidadoso. Quando menina, trabalhava no roçado: roçava, semeava, colhia, quebrava coco… Quando jovem, casou-se, teve cinco filhos e, com a reviravolta do tempo, ficou viúva e voltou à roça para sustentar os filhos, à mesma labuta na agricultura e pecuária, com o que foi deixado por meu avô para subsistência. Minha avó fazia com presteza, paciência e determinação o desfiar do tucum e, nesse desfiar, exercia os sentidos da maternidade. Mãos incansáveis e no controle, dedos ágeis; muito trabalho, pouca quantia recebida. Desfiar a palha do tucum requeria, além de destreza, agilidade e paciência. Quebrar coco e desfiar tucum eram o trabalho da maioria das mulheres nordestinas naquela época. Quantos quilos de fiapo de tucum saíram das mãos das mulheres maranhenses para serem vendidos no mercado?

Dona Salu nasceu em 1911, casou-se aos 22 anos e ficou viúva aos 31 anos. Uma mulher negra, pobre, altiva, determinada, vendeu o que tinha, com o propósito de enviar os filhos, acompanhados de uma das suas irmãs, para a capital do Piauí, a fim de eles estudarem. E foram os estudos que possibilitaram novos rumos na vida de meus/minhas tios/tias e de minha mãe. “Sem estudos, nada se vale”, ela dizia.

Mas minha mãe interrompeu os estudos para se casar. Ela teve quatro filhos, separou-se quando todos nós éramos pequenos e nos criou com ajuda e apoio incondicional de minha avó e tias-avós. Depois que minha mãe se separou de meu pai, ela voltou a estudar e obteve duas profissões: auxiliar de enfermagem e depois técnica em contabilidade. O trabalho da minha mãe nos dava sustento, minha avó e tias cuidavam de nós. Crescemos sob o cuidado de nossas mais velhas, uma rede de mulheres viúvas e solteiras, avó e tias- -avós, ensinavam-nos, brigavam, alertavam e estimulavam a seguir nossos sonhos. Eram várias casas com um único quintal, onde mulheres, tecendo o fio da dedicação, do cuidado e da vigília sobre nós. Isso era grandioso para fortalecer nossa autoestima, secar nossas lágrimas e aliviar nossas dores, quando o mundo lá fora nos maltratava ou inferiorizava.

O preconceito e a discriminação sobre meninas e meninos negros, pobres, sem pai, muitas vezes se agravavam pelo fato de prevalecer a ideia de que eles não tinham amparo e/ou viviam largados. No entanto, para nós, havia uma rede de cuidados que foi fundamental para não sucumbirmos. Crescemos, estudamos, formamo-nos, casamo-nos, construímos família, tivemos filhos, mas também houve separações, e novas mães solo. Filhos, sobrinhos e sobrinhas continuam o legado dos estudos e estão na universidade. A família segue o fundamento da minha avó, que dizia que só o estudo é que nos faria gente. Ao dizer “gente”, ela estava querendo dizer “ser” com autonomia, consciência e determinação.

Conto um pouco da trajetória das gerações da minha família materna como revivência de memória e evocação às forças das nossas mais velhas. As mulheres negras no Brasil sempre estiveram na condição de desigualdade, enfrentando dificuldades de manutenção de seu lugar social como sujeita de seu próprio caminho emancipatório. O poder escravocrata e colonial lhe negou o direito de ser mãe, de amamentar seus filhos, impôs que amamentasse e educasse os filhos das mulheres brancas. A sociedade capitalista as fez maioria nas fileiras dos empregos mal remunerados, dos subempregos, interferindo ou negando o direito de criar os filhos condignamente. As mulheres negras são as maiores vítimas da violência obstetrícia e da negação às condições dignas de manter os filhos nas escolas. E isso se intensificou de 2016 a 2022, quando o país se encontrou em estado de letargia econômica e negligência social. A sociedade brasileira sempre lhes designou a condição de subalternização, sob tutela do patriarcado. Essa sociedade, estruturalmente racista, machista, sob o domínio da branquitude, empreende incessantes mecanismos de imobilidade social. O processo contínuo de subalternização condiz com o estado de submissão e de medo, amalgamado como sustentáculo impositivo de violência a ferir e interromper aspirações e sonhos.

No dia a dia, a sina era e é sobreviver fiando as estratégias. Entrelaçando os fios da desobediência, repetidas vezes contidas quando são submetidas a perdas e maus tratos. Ser mãe consiste invariavelmente em atravessar a ponte da batalha diária, sem abrir mão do brio, honestidade e desvelo; significa renunciar a novos amores e à manutenção dos desejos. Maternar passa por negociar com o parceiro o direito de ter tempo para si, autocuidar-se; negociar também com os filhos o passaporte para voltar a existir com suas fragilidades, manter autoridade sem ser autoritária, não se submeter ao poder de um ou de outro. Maternar, no mundo misógino, consiste em saber extrair a força no ato de ser mães solo. Saber macerar, por outro lado, o broto da irmandade com outras mulheres. Contar com auxílio entre irmãs, amigas, mães, como medida protetiva para saúde mental, a fim de não arquejar, persistir na labuta e fazer valer o elo azeitado da solidariedade. A cura.

A cura. Existir com e para os filhos é crescer/amadurecer junto e, na adversidade, estabelecer ponte vital para não sucumbir e nem se curvar à inapetência. Nos piores momentos, vem a sensação de ânsia resultante da solidão e do descrédito. Trilhar a vida se impõe pelo embate interno e externo: autossabotagem travestida de vários despistes; raias do poder do desânimo sob o efeito devastador do machismo, do racismo e de outros ismos herdeiros do patriarcado disseminado para a rendição. Se, para as mulheres sós, a vida é atravessada por discriminações e preconceitos no vaticínio da colonialidade, para as mulheres casadas, cujo marido ou companheiro que não as valoriza e nem as respeita, outras violências são acionadas como dispositivos de dominação. E, nessa base moldada pela dor, negação e incerteza, há de se buscar a travessia, requerendo a força ancestral emanada do rito primordial da teima.

Viver implica teimar, subverter o percurso, desobedecer, reacreditar em si quando o olhar do/a outro/a revela piedade, dó e descredito. Viver passa a ser teimosia, buscar e encontrar maneira de respirar o aperto e o sufoco que desce pela garganta e se alastra no corpo…

Saber respirar com o corpo à deriva para empreender a volta a si em estado de revigoramento. Quando tudo é treva, as mulheres negras afirmam para si que elas mesmas têm a chave para abrir a porta, mesmo que o medo já tenha se transformado em monstro que as fazem esbarrar no poço.

Para as mulheres negras que exerceram e exercem suas maternidades ou maternagens sob a linha da navalha que lhe queria e quer tirar as condições de criar seus filhos/as ou jogá-los/las na marginalidade, a saída foi e é peitar e minar as estruturas hierarquizantes pelas brechas, pelas fissuras, infiltrando-se e detonando as rachaduras dos (des)mandos masculinos nas micro e nas macroestruturas. Ser mãe: parir, criar e lançar-se na vida, pontuando e construindo estratégias do viver, fiando táticas e não dosando limites.

Minha avó, mãe, tias-avós, tias, como a maioria das mulheres negras e pobres, não desistiram; e a maioria de nós não desiste de fazer brotar por nossas forças uterinas o plano, o fundo, a argamassa da construção de novas formas de ser e de viver. Isso parece ser a principal força de transmutação da existência. Todos/as/es nós, filhas, investidas da função de mães, também exercemos estratégias e táticas para o controle das vidas que semeamos. Ser maternalmente pessoa, ser fecundo, enquanto fonte e pulsão da vida, empreende uma forma de existir não individualista, mas autocentrada, somos com nossos/as filhos/as. Existimos em suas existências, mas tudo é incompletude.

O desafio de homens e mulheres viverem com dignidade numa sociedade machista e misógina é aprender a ética do não assujeitamento. A mãe, no percurso impreciso da própria vida, teme a morte, a exploração, a violência contra os filhos, teme por não saber até que ponto o que foi alertado, ensinado, orientado e vivido vai prevalecer diante das artimanhas do poder que colapsa a dignidade.

Quando a sociedade as desumaniza e as massacra, quando o Estado as extermina, quando o poder as corrompe ou o racismo, a misoginia, a homofobia destecem sua aura e derrocam suas autoestimas, não há mãe que não se definhe.

O poder de gerar circunscreve-se no elástico útero que se metamorfoseia através do movimento de expelir e recolher-se, produzir e eliminar a placenta, Parir. Nutrir. Há uma escritora negra contemporânea, Lilian de Deus, que assegura em um dos seus contos que “não é preciso ter útero para ser mulher”. [Lilian Paula Serra e Deus. Não é preciso ter útero para ser mulher. São Paulo: Editora Voz de Mulher, 2020]. Diante das selvagens incursões que a sociedade executa no corpo da mulher, nosso útero entra numa espécie de “ressecamento”, “atrofiamento”, distende-se e, ao fazê-lo, adoece nosso corpo. Como vamos dissipar as dores que “podem nos matar”? Aquela morte morrida, dolorida, que nos diminui dia a dia diante da sina de ser “mulher” e “mãe”?

Já investiram tanto em nos ludibriar, tangendo-nos a um lugar vitralizado, vestindo-nos de “avental todo sujo de ovos”. Uma angústia que tinha de ser suportável, com dose de anestesiante. Maternidade não se consume por vias doces, cor-de-rosa e de recatos que refrigeram o poder e o controle patriarcal da sociedade capitalista. Maternar soa e sintoniza com a sina de aguerriamento, porque, para as mães negras, criar semantiza combater. Combater ressoa quotidianamente reexistir, refazer-se em prol da guarnição dos filhos/as, para que eles possam viver como homens e mulheres conscientes e autônomos/as.

A mulher se torna mãe ao partir o/a filho/a e, nesse manifesto, apura-se a teia do sentir e ser num paradoxal estado de completude e incompletude. Espiral do tempo, interseção, elos e fios de parecenças. A mãe, a que não é mais quem era, recusa a perder sua identidade, enquanto em si já é outra.

Eu sou, porque elas (as mais velhas) foram, porque na dor, na solidão, no banimento, no medo, no horror, elas não desistiram e nos amaram, cuidaram, guerrearam na batalha dos dias. Eu sou, porque elas foram, são e serão. Corpos e mentes inquietos, cujo silêncio prescreve jeito de não naufragar. Aquele/a “que de mim brota” também sou eu e juntos/as iremos resistir.

Uma de nossas poetas mais velhas, ensina-nos que as nossas vozes reverberam o ontem, o hoje e o amanhã. [“Vozes mulheres”, de Conceição Evaristo. Poema contido no livro Poema da recordação e outros movimentos. Rio de Janeiro: Malê, 2021.] A espiral feminina negra fecunda no e do movimento sankofa cerzindo o amanhã, tecendo o futuro da humanidade com a chama que nunca cessa, emanada pela força das mãos. O que se fez ontem, desfiando o fio tucum-tensões, finos, retesados no reparo dos descaminhos, azeitou o hoje, contínua fiação da esperança. Essa força vital e espiral feminina negra toma forma no movimento do corpo, ondulado com o balanço das “águas memórias” a enobrecer o devir. Estamos despertas e em vigília, a tecer, sob o manto ancestral Yemanjá, a trama de nossas vidas. Mãe, nos ouça!

Ê Gni Nbo Nboia
Kaniré Oyá Ba
Na beira do mar
Chamarei por Iemanjá

Olhai, mãe santa
Meu canto de dor
Feito em seu louvor

Iemanjá
Iemanjá Eru, Boa-ó
Iemanjá Eur
Minha dor

Na beira do mar
Chamarei por Iemanjá
Ê Gni NBo NBoia
Kaniré Iemanjá

Odé, Oxossi
Ogum, Ajanshu
Iemanjá Eru, Boa-ó
Iemanjá Eru, Boa-ó
Iemanjá Eru, Boa-ó

Ê Gni Nbo Nboia
Chamarei por Iemanjá
Na beira do mar
Clamarei por Iemanjá

Lamento das águas / Na beira do mar
Mateus Aleluia – Dadinho