[N.155 | 2025]

Eliete: a vida normal [fragmento]

Dulce Maria Cardoso

Ninguém podia acusar-me de não ter cumprido com esmero as minhas obrigações no que dizia respeito aos aspetos práticos, a parte mais comezinha da maternidade. Enquanto as miúdas precisaram dos meus cuidados, dei-lhes sempre comida a horas e preparei as refeições tendo em conta que uma não gostava de iscas, ervilhas e coco, e que a outra não gostava de peixe cozido e pimento, não permiti que fossem para a escola sem o banho tomado, ainda que isso, muitas vezes, implicasse birras extenuantes, mantive a casa limpa, garanti-lhes as horas de sono suficientes, estive atenta às listas do Pai Natal e aos medos do escuro e dos ladrões, inscrevi-as na natação, na música, no ioga e no canto, escangalhei os meus fins de semana para as levar às festas das amigas, cansei-me com elas nos saldos sem comprar nada para mim, mudei-me para o quarto delas sempre que me chamaram num febrão, diarreia ou pesadelo. Ninguém podia acusar-me de eu não ter sido uma boa mãe no que dizia respeito aos aspetos práticos, tal como ninguém podia acusar-me de eu não me ter esforçado para me manter próxima das miúdas quando elas deixaram de precisar dos meus cuidados. Só que então a proximidade passou a depender também da disponibilidade e da vontade delas e, por mais esforços que eu fizesse, essa disponibilidade e essa vontade tardavam em surgir, até que percebi que nunca surgiriam. A culpa disso era minha, tinha de ser minha, já levava muitos anos de mundo quando as fizera nascer, competia-me saber apresentar-lhes como feliz a relação que gostaria de ter com elas. Não o soubera fazer. Não soubera sequer convidá-las a inventar uma felicidade benigna. Às vezes parecia-me que a Márcia confundia felicidade com estados melancólicos e a Inês, com conflitos desgastantes. Sentia que isso não era bom, sabia pouco de felicidade, mas sabia que nem o negrume nem a tensão eram bons caminhos para a alcançar. Tinha de as salvar de felicidades tortuosas e nem disso era capaz.

As consequências da minha incapacidade maternal manifestavam-se em muitos aspetos práticos do nosso quotidiano e um deles era a discreta mas obstinada recusa das miúdas em me terem como confidente. Quando se arrastavam tristes ou preocupadas e eu tentava perceber a razão daquele estado, disfarçavam imediatamente, nunca era nada de especial. Eu não insistia. Não por desinteresse, mas por não saber como insistir sem me tornar chata, metediça, abusiva. E as miúdas iam arrastando os seus problemas e tristezas cada vez para mais longe de mim, como já tinham arrastado os seus gostos e interesses. Não me importei quando deixei de ser interlocutora delas nos ditos assuntos de mulheres, roupas, penteados e afins, desculpei-me com a vertigem insana da moda, mas já me importei e muito quando me excluíram dos outros assuntos da vida em geral, amizades, amores, escolhas profissionais, posições políticas, preocupações ecológicas, gostos musicais, assuntos em que o Jorge parecia sair-se tão bem.

O que sentia em relação a Inês era o mesmo que sentia em relação à Márcia e vice-versa, nada havia de substancialmente diferente na relação com cada uma delas, ainda que com a Márcia fosse mais fácil iludir-me de que era boa mãe. A Márcia ouvia os meus conselhos, ainda que o fizesse com mais paciência do que admiração, e parecia ficar contente quando a desafiava para irmos juntas à manicura ou para fazermos scones numa tarde invernosa. A Inês, pelo contrário, deixava claro que se entediava de morte quando eu me punha a discorrer sobre o seu futuro e, além de se escapar sempre a qualquer atividade que lhe propusesse, transformava amiúde as minhas palavras ou ações no início de dolorosos conflitos. Estava convencida de que a Inês começara a discutir comigo para demonstrar quão mais brilhante era do que todos nós, e que depois as discussões se tornaram um hábito, e o hábito acabara por lhe moldar a maneira de ser. E, no entanto, tinha de confessar que me enternecia olhar para a Inês nas poses do Instagram e ver-me cuspida e escarrada, como dizia a mamã. Era inegável que os meus genes pardacentos haviam levado a melhor sobre os genes do Jorge, tanta coisa minha ia descobrindo nas miúdas com um misto de maravilhamento e pesar. Se pudesse ter escolhido, nem a Inês teria herdado as minhas feições medianas nem a Márcia a minha inteligência mediana, ainda que eu soubesse que o primeiro castigo era pior do que o segundo. A inteligência não constituía uma vantagem imediata, por requerer um interlocutor à altura, ao passo que a beleza se impunha, sem reservas, ao primeiro olhar. E se sempre assim havia sido, se a imagem fora quase sempre o início de tudo, agora era também e, cada vez mais, o fim de tudo. E a Inês não podia não saber disso. Ao ter herdado a inteligência do Jorge, ou melhor, a inteligência do Jorge aperfeiçoada, já que ele não era tão brilhante, a Inês estava condenada à lucidez e não podia ignorar que o seu aspeto mediano a faria perder no primeiro round para as mais bonitas. De nada adiantavam as muitas horas que investia em dietas e ginásios, a única coisa que lhe valia era o caráter desabrido com que conquistava os rapazes. O Instagram revelava-me que a Inês era bastante popular entre os rapazes, Não quebrava corações à primeira vista, mas os que lhe davam conversa cedo ficavam presos na sua teia.

Vigiar a conta do Instagram da Inês permitia-me saber o que ela pensava, do que gostava, com quem andava sem ter de a aborrecer, até porque a Inês, que tão bem se furtava a responder às minhas perguntas, esmerava-se nas longas respostas que dava aos seus seguidores. Sugerira-lhe certo dia que nos tornássemos amigas no Facebook, mas a resposta veio pronta, Quem é a totó que aceita a mãe como amiga do Facebook? Não lhe soube responder, mas senti-me legitimada para continuar a vigiá-la no Instagram, onde no dia anterior vira uma fotografia da mão dela entrelaçada na de um rapaz, acompanhada da legenda, when you find everything you’ve looked for ou quando tudo o que tu procuraste estava mesmo debaixo do teu nariz, que terminava com emojis de ursinhos, flores e corações. Eu andava com a cabeça tão ocupada a tratar da logística para que a estada da avó corresse bem, que não me dei ao trabalho de tentar perceber quem seria o rapaz. De qualquer maneira, os entusiasmos da Inês nunca duravam mais do que umas semanas, dali a pouco a Inês já estaria noutra, foi assim que respondeu, sem resquício de desgosto, quando a Márcia lhe perguntou por uma espécie de namorado que a Inês lhe apresentara, Ah, esse, já estou noutra. Como eu sofrera tanto do mal de amor, agradava-me pensar que a frieza da Inês me vingava e que fora a educação que eu lhe dera que a tornara tão forte e independente. A Inês escolhia livremente aquilo que queria que lhe acontecesse.