[ N.73| 2023]

Escrita de uma mãe em fúria [fragmento]

Núria Manresa Camargos

21 de abril de 2021
Bico torto e as outras galinhas

Uma amiga da Rita enviou a ela um vídeo da sua gata parindo um filhote, e Rita me indagou sobre o pai. Toda família tem mãe e pai? Respondi que não. Algumas famílias têm só mãe, outras só pai, outras duas mães e outras dois pais. Respondi com uma certeza que quase nunca tenho. Não tardou uma semana para Rita constatar que minha resposta estava errada.

Fazia dias que observávamos com curiosidade cinco galinhas juntinhas e quietinhas na caixa no quintal de nossa casa no bairro Santa Inês, em Belo Horizonte. Hoje pela manhã, Rita veio nos contar que Pingo de Joaninha ou Pingo de Ouro havia nascido e tinha cinco mães. O único pai cantava solto pelo terreiro anunciando o nascimento. As cinco mães estavam juntas defendendo o recém-nascido Pingo.

A família de humanos logo começou com suas suposições: “A Bico Torto não é a mãe, ela é a avó, pois chocou as outras.” O argumento não era suficientemente bom, pois Bico Torto também participou da chocada com o seu calor e era a mais protetora, ciumenta e bicadora dos visitantes. Rapidamente, outra tentativa: “A mãe é essa branca, pois o Pingo é branco.” Mas é certo que Branca não era a única a cuidar do Pingo nem fora a única a chocar. Aliás, Branca era a que menos ficava perto do Pingo.

Todo o alvoroço no terreiro só gerou mais perguntas, evidenciando que a minha certeza era um fracasso, ou que mãe não é aquela que sabe as respostas: família é quem bota o ovo, quem choca, quem canta, quem ensina a ciscar?

25 de novembro de 2021
A Esperada

Era noite de novembro na Serra do Caraça, no quadrilátero aquífero. Apesar de na cidade já fazer verão, ali a noite era inverno com vento frio. Estávamos nós duas em meio a um círculo de humanos desconhecidos, esperando para vê-la. A espera começou quando escureceu, ainda estávamos ali e já eram dez da noite. Meus olhos começaram a fechar, os dela não, seguiam abertos e vivos. Ninguém sabia se a Esperada viria. Era preciso calar para não a espantar. Eu já estava pronta para desistir quando a loba apareceu, contrariando minhas previsões. Sozinha, com seu pelo vermelho e suas pernas longas, subiu a escada e parou no meio do círculo de falantes. Seus olhos pretos fitaram os nossos, também pretos. Começou a comer. A mão pequenina apertou a minha com força. Eu quase pude pegar em seus batimentos, tal como no dia em que nasceu.

Ao observar seus gestos elegantes e ao mesmo tempo desengonçados, imaginei os passeios solitários pelas noites no cerrado. Imaginei como se dá o encontro anual com o macho, como é a transa ocasional, como é o começo da gestação dos filhotes. Arrepiei. A imaginei grávida, sozinha outra vez. O parto. Me emocionei imaginando o curto tempo em que a espécie solitária fica acompanhada de seus filhos. Bateu um vento frio e a dúvida: quando os filhos começam a buscar seus territórios e delimitá-los com suas urinas, fezes e vocalização? Quem primeiro percebe esse movimento? Os filhos ou a mãe? Quando recomeça a solidão?

29 de junho de 2022
A Mancha

Quinto dia de sintomas e voltei a sentir o ar passar pelas narinas. Para comemorar, fomos para o quintal, desenhar o jardim. Bananeira, capim cidreira, vetiver, erva baleeira, boldo, alecrim, hibisco vinagreira. Ainda não sinto os cheiros nem gostos, fui para apreciar as formas.

Entre canetinhas e aquarelas, o texto da Karen Shiratori: “Vegetalidade humana e o medo do olhar feminino”. Ela começa contando sobre outro livro – A vegetariana –, que por sua vez começa com a narração de um marido que conta estupefato como a mudança incompreensível dos hábitos alimentares da mulher, ou melhor, como os sonhos fizeram dela uma esposa inadequada para ele, antes acostumado a não ver nela nada de especial, nenhum defeito, tampouco qualquer encanto. Karen conta que a segunda parte do livro é sobre a mancha mongólica dessa mulher. “Uma mancha verde como um resquício de fotossíntese; anunciando uma existência cada vez mais forasteira.” Uma mancha mongólica é certamente um resquício vegetal, uma parte da pele que respira como planta.

A Rita desenha comigo as plantas do quintal e busco nela vestígios de suas manchas mongólicas. Há quase seis anos, quando ela nasceu, me assustei com aquela enorme mancha verde bem no meio da sua testa. A outra ocupava a metade das costas e o início das nádegas. O que é isso? Perguntei baixinho para a parteira, pouco depois da Rita sair do meu ventre. Ela me atravessou com um olhar firme e doce, enquanto repousava suas mãos molhadas na menina-planta.